Sou, penso eu, um afortunado por ter poucos mas bons amigos. E isso faz a diferença para quem, como eu, avança a passos largos acompanhado bem de perto pela velhice eterna. Mas... olvidemos a questão temporal.
Na passada 5.ª feira, dia 12, aproveitei o facto de ter de estar na Guarda para efectuar a apresentação do livro "Tenho uma pedra na cabeça", a minha mais recente edição. E, sabendo que era uma semana difícil para os que gostam de cultura e de poesia (muitos estiveram em ensaios para o "Galo do Entrudo"), avancei na pretensão com a consciência de quem sabe o que o espera. Não fiquei defraudado! A sala estava repleta de interesse, condensado em poucos mas bons ouvintes. Gostei de os ter por lá!
De seguida, o José Monteiro fez uma apresentação (que publicarei no final deste texto) muito boa e, como disse então, ensinou-me muitas coisas sobre a minha escrita. O professor António José Dias de Almeida e o Jos van den Hoogen leram, maravilhosamente, alguns poemas. No caso do Jos, foram apresentados dois dos poemas que ele traduziu e que vão integrar a "Bloemlezing 7+7+1" (perdoe-me Jos se não for assim), uma antologia bilingue - português e holandês - que terá uma tiragem limitada de 33 exemplares e terá outras particularidades (no início de Março darei mais informações). Por fim, aproveitei para agradecer a presença de todos os que me acompanharam neste dia e fiz algumas referências ao livro.
Gosto sempre de estar na Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço e gostei muito de encontrar lá a calmaria literária, mas gostei principalmente de encontrar lá a amizade.
Texto e poema de José Monteiro, ambos apresentados na sessão:
"Não
é verdade que só o autor se apaixona pela obra. Também a obra se apaixona pelo
seu autor. Na verdade é mesmo por isso que o autor se apaixona por ela."
ANA HATHERLY
Um
livro especialmente de poesia não se deixa apresentar, apresenta-se ele
sozinho. É o rosto visível de alguém que investiu nele tudo o que tinha para
dar, naquele momento. Outros virão de certeza melhores. Assim acontece neste
“Tenho uma pedra” onde da escrita intimista, os poemas saem materializados em
palavras que às vezes são pedras. Ora ter uma pedra na cabeça é um acto
não-poético. Era!
Este
livro de Daniel Rocha vem provar que ser artista é saber pegar na realidade e
expô-la, é pegar numa pedra e expandi-la. Fazê-la viver. Torná-la expansiva. Quando
comecei a ler o livro veio-me à lembrança o que diz Sophia na sua Arte Poética
III:
O artista não é, e nunca foi, um homem
isolado que vive no alto duma torre de marfim. O artista, mesmo aquele que mais
se coloca à margem da convivência, influenciará necessariamente, através da sua
obra, a vida e o destino dos outros. Mesmo que o artista escolha o isolamento
como melhor condição de trabalho e criação, pelo simples facto de fazer uma
obra de rigor, de verdade e de consciência ele irá contribuir para a formação duma
consciência comum. Mesmo que fale
somente de pedras ou de brisas a obra do artista vem sempre dizer-nos isto: Que
não somos apenas animais acossados na luta pela sobrevivência mas que somos,
por direito natural, herdeiros da liberdade e da dignidade do ser. (Arte
poética III, Sophia)
Ora
isto leva-nos às pedras do nosso autor. Ele próprio reconheceu que a pedra que
esteve na sua cabeça – não interessa a localização exacta, se foi no lado
esquerdo, anterior, posterior ou parietal – esteve Aprisionada num recanto escuro do cérebro, significa e interpreta, ao
mesmo tempo que oferece leituras e compreensões. Partindo da sua forma
significativa, a pedra entrega-se nas mãos, nos pés, nos olhos, na imaginação
ou no objecto de desejo de vários tempos e modos, surgindo nua e desprovida de
vida no final da leitura. E afinal aqui está tudo resumido, não seria
preciso dizer mais. [Mas como ao outro poeta, também a mim surgiu uma
pedra no caminho, com a tarefa mais difícil de vos apresentar essa pedra.]
A poesia do autor já é nossa conhecida e
também o é a sua preocupação com o tratamento a dar à palavra. E se ele nos
oferece estes poemas é porque os julgou purgados através de um trabalho “improbus” horaciano e de polimento das
palavras como se de pérolas se tratasse. Por isso estamos perante um conjunto
de poemas quase perfeitos e com a exacta imperfeição de palavras cumprindo
objectivos previamente definidos. Este livro pode ser assim aa sua arte
poética.
Na
minha leitura da obra saliento três tópicos:
1º Concepção de poeta e de poesia. O
poeta é um rio, como refere no poema “Gotas de Pedra”, (17 – Talvez tu não o saibas, mas já fui um rio.)
onde se faz a confluência (desaguam) de vários elementos sintetizando o que
decorre de uma existência às vezes mineral e em que a pedra o obriga a desviar
a efluência dos fluidos intelectuais.
A
referida confluência existe no poema “conjugação”: em que o processo de criação
vai desde o volitivo do acto, do verbo, passando pela mineralização
inadvertida, pelo acto amatório julgado mesmo obsceno (delicado gesto obsceno 31), pela impressão da não existência
enquanto ser e pelo desafio final da consciência da sua limitação. (Daí o verso
final: Conjugo-te, enfim!) Essa consciência conduz ao grito expresso no título
de “antes que a vida passe” que é uma retoma do tema clássico do tempus fugit ou, como se assume
explicitamente, do tempus edax rerum (58
Ovídio).
A
fluidez do poema converte mesmo a pedra em gotas e voltamos à imagem do rio e
da consequente água. E assim se conjuga o concreto da pedra com a fluidez da
água (17 o rio fluir rápido, 20 quente fluido, 28 fluidez dos tempos, 35
corrupio fluído) que por sua vez se torna também matéria poética. [Acho que uma
das palavras chave da obra é mesmo fluir
e seus derivados] Então o poeta assume-se como Narciso *(A água cansada de olhares / ressumava o futuro dos dias / e das gentes.58)
e refugia-se na imagem do rio de palavras que brotam do peito, da boca e da
cabeça (16) pois “tem mais palavras que a
própria língua … no ritmo que lhe aprouver”*(17) Afinal o poeta, se não
utilizar correctamente as palavras, pode matar
/ talvez de silêncio / as sílabas de liberdade / e as rimas ricas / dos versos.
(44)
Ficamos
também a saber que o que move o poeta afinal é Eros que alimenta Apolo e o faz suar de prazer (59), ou seja, a poesia
tem consequentemente um carácter lúdico, prazeroso (comboio de corda) e Apolo fascina-se / pela petrificada figura.
… A pedra excita Apolo / e Eros viola o seu / arco (60). Mas esta afirmação
semeia dúvidas como estas: Apolo, o deus protector das Musas (na Grécia),
submete-se a Eros? Ou é Apolo, deus do sol, que se deixa sombrear por Eros? Ou
o poema necessita haurir de Eros apenas a excitação, o despertar para a
realidade que a pedra significa?
Mas
a imagem mais significativa nesta concepção de poeta é a do poema onde o escultor surge. Nada mais adequado do
que o escultor, qual estatuário, qual artista, converter a simples pedra inerte
numa obra de aperfeiçoamento em que haja vida. Os últimos versos são para mim a
síntese perfeita de poeta e poesia. *(37/8)
2º
A pedra como matéria poética. – O tema da pedra não
é novo na poesia. Vem-nos imediatamente à memória o poema de Carlos Drummond de
Andrade (No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho),
talvez o poema mais conhecido da temática. Mas o que significa e interpreta
esta pedra? Para o autor a pedra reveste várias espécies: a casinal (36, 47), a
mística ou sagrada (pedra ara sacra 35),
a mítica, a histórica, a lendária, a imaginária, a real, … *(66). Vou deter-me
apenas nas duas primeiras.
A
casinal joga ao destino com as
palavras e obedece à predestinação com que os deuses jogam com os humanos. Não
é por acaso que aparece no poema “Sísifo”, esse castigado exemplar, servindo aos
humanos de lição empurrando indefinidamente a pedra por ter ousado infringir as
regras dos deuses e ter voltado do Hades. É esta pedra representante do desafio
que o poema constitui ou deve constituir em relação à ordem estabelecida? O
poema “Matar” significa isso mesmo, a revolta contra o que está mal na
sociedade. Ou significa a ousadia do aprisionamento de Tanatos (deus da morte)
conseguindo a imortalidade através das palavras?
A
mística ou sagrada, liga-se à presença
implícita, facilmente adivinhada, da pedra angular bíblica que os construtores
rejeitaram. A pedra / palavra será motivo poético se tiver esse carácter de
segregação, separação do que é profano, do vulgo. Nessa altura ganhará vida e
tornar-se-á representativa do verdadeiro valor do poema: missionar. E não é a
única presença do sagrado pois pelo menos em dois poemas há referência ao leite
e mel (54, 57) elementos messiânicos da ansiada terra prometida. Não já do
desejo judaico no domínio dessa utopia, mas na possibilidade da nascitura pedra
que se expande desfazendo o tiro natural
da biologia.(25). A eterna ânsia de quebrar as leis da vida e conseguir
assim a imortalidade.
3º As influências. Um bom escritor
nunca deixa de revelar as influências recebidas das suas leituras quer em
termos de poética quer em termos de educação. Ora neste livro há nitidamente
várias fontes onde o autor bebeu.
Quanto
a autores / poetas nota-se a presença silenciosa de Manuel António Pina nas
temáticas abordadas e mesmo nas formas utilizadas. O já referido Carlos
Drummond de Andrade (20). A loucura insistente de um Álvaro de Campos (64).
Ovídio e as suas Metamorfoses na expressão referida acima “edax rerum (58). Ricardo Reis surge-nos inevitavelmente quando
abrimos a página no poema “Os novos jogadores de xadrez”. Há também uns aromas
de Sophia no poema “Minotauro”.
Quanto
à educação escolar e universitária é por de mais evidente. Não apenas nos
títulos dos poemas, mas no seu conteúdo. As figuras mitológicas carregadas de
diversos e ricos simbolismos: Sísifo, Hefesto, Eros, Minotauro, Apolo … e de
inspiração explicitamente bíblica: David e Golias.
Em
síntese, tudo pode terminar na cabeça onde a pedra devia morar. Quem diz
cabeça, diz sótão. Quem diz pedra, diz livro. Este teme apenas o frio da
ausência de leitura, de leitores. Por isso há que fugir do sótão onde mora o
frio da solidão literária. Caso contrário pode acontecer o que diz a poetisa
brasileira Adélia Prado: “Deus de vez em
quando me tira a poesia e eu olho pedras e vejo pedras mesmo...”
“Tenho uma
pedra”
O homem ser
esquisito
pensa e
escreve
Como quem
respira o ar quente da noite
Onde as gotas
de pedra fazem eco na solidão dos pensamentos.
No sótão,
lugar frio onde os livros
são pedras
que se expandem
e fogem ao tiro natural da Biologia
provoca-se o
sangramento das palavras
e restam as
impressões da tarde.
Mas da conjugação
dos astros – leia-se influências -
quando o
homem chora
antes que
seja tarde
surge o
escultor, estatuário de pedras feitas ideias.
O poeta,
escultor de frases manufacturadas,
grita que é
proibido não proibir
e que é
preciso matar a opressão das palavras.
Os novos
jogadores de xadrez substituem palavras por pedras
e, qual Sísifo,
enfrentam o destino
na luta
desigual de David e Golias.
Presos no
labirinto, dominam o Minotauro
embora o Narciso
interior os faça caminhar
para o
domínio de um Eros construtor de imagens
e de
sensações persistentes como um formigueiro
em que as
ideias são emanadas pelo pó das pedras.
Ou, então –
é o poeta quem o diz - nada disto!
Na biblioteca, em cada livro,
em cada página sobre si
recolhida, às horas mortas em que
a casa se recolheu também
virada para o lado de dentro,
as palavras dormem talvez,
sílaba a sílaba,
o sono cego que dormiram as coisas
antes da chegada dos deuses.
Aí, onde não alcançam nem o poeta
nem a leitura,
o poema está só.
‘E, incapaz de suportar sozinho a vida, canta.’
Manuel António
Pina, Poesia, saudade da prosa.
|
(Todas as fotos são da autoria do Arménio Bernardo) |