domingo, outubro 21, 2018

10. Crónicas Silenciosas - o conforto de ter uma família

1. A vontade de prejudicar ou de fazer mal ao outro faz parte do ADN de muitos e terá, certamente, uma raiz profunda na incapacidade de pensar que um dia nos podemos encontrar sozinhos, com frio e a precisar de um qualquer acto voluntário do outro. Porém, como acima referi, o ADN, ou a raiva ou a simples vontade de querer "morder" no outro, provoca a alucinada visão da sobranceria e do grande poder. 
A análise ao percurso de muitos destes pequenos e fervorosos adeptos da contenda contínua (que é o mesmo que dizer: gente que se baba quando fala e que parece estar sempre prestes a sofrer uma apoplexia) revela que se rodeiam sempre de fervorosos seguidores. O facto de haver fervorosos seguidores não é mau por inteiro. O que será mau é que estes mesmos seguidores são (já dizia o Padre António Vieira) rémoras que têm como única intenção "alimentar-se dos restos do maior". E é nisso que se baseia a missão desses muitos, profundamente atraentes na arte de bem dividir: dar o que os outros esperam ou aspiram receber. Este acto de "orgia alimentar" junta os alegres comensais até ao dia em que um e outro, tomando consciência de que algo está mal, se afastam. Oh! Maravilhas do baixíssimo, tal como foram adorados como súbditos eficazes eis que são agora tratados pelo grande e acérrimo grupo como "gentes de mal" e que (dizem de ouvido a ouvido dos primos e colegas orgiásticos) "fizeram muitas maldades".
Mas, como a base dessas pessoas tem uma família que é clara e nada tem a esconder (por exemplo, não tem negócios secretos que impliquem a solidariedade cega de todos), quem fugiu do grupo fervoroso e extremista terá uma aceitação. Isto se, como é óbvio, a intenção de quem regressa ao leito familiar for a integração no mesmo leito e a concórdia (não feita com paninhos quentes e com o jogo do esconde-esconde, mas com diálogo sério e não predeterminado).
2. Há muitos anos, em Alexandria (no Egipto), Hypatia é morta por fervorosos cristãos (encabeçados por Cirilo) que a acusavam de bruxaria. Hypatia era "só" professora e entusiasta de matemática, astronomia, filosofia, religião, poesia, artes, oratória e retórica. Educava várias facções, entre cristãos e não cristãos, e acreditava que a educação de todos serviria para criar um ambiente de convivência e respeito entre todos, onde o diálogo (lembro-me sempre do "Banquete", de Platão) e a aprendizagem mútua seria o motor daquela sociedade. No entanto, a ausência de diálogo entre os "donos da verdade cristã" e os outros ganhou. Hypatia morre apedrejada, maltratada, difamada e acusada de "centenas" de crimes. Hypatia morre por ser alguém que pensava de forma diferente dos outros, o grande e ganancioso grupo, acrescento eu. A morte de Hypatia, segundo alguns dos maiores especialistas das áreas que ela ensinou e desenvolveu, originou a decadência intelectual de Alexandria e o fim do diálogo entre facções. Hypatia tinha, supostamente, alguns amigos. Hypatia não tinha já família. Hypatia não foi responsável pela decadência que se gerou.
3. Em suma: não nos devemos queixar de não florir uma flor no nosso jardim quando andámos com o herbicida atrás das poucas que floresciam; não devemos também esquecer que as decisões que tomamos, em favor de uns e contra os outros, terão continuidade; não devemos esquecer que a família tem raízes de ferro, que nos assegurarão algum suporte, mas não podemos andar a fundir o mesmo ferro e esperar que ele não sofra.