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quinta-feira, julho 03, 2014

Recensão crítica à peça "A Casa da Memória", por José Monteiro









[“A casa da memória”, Daniel Rocha
Edição: Grupo de Amigos do Manigoto
Manigoto, 2013]

“Regresso devagar ao teu
 sorriso como quem volta a casa.”
(Manuel Antº Pina)

      A casa da memória não será também a memória de uma casa? Quem diz casa, diz lar, diz aldeia, diz imaginário. Diz lenda, escreve passado, traduz mitos. Pensa caminho, rota, transumância. A vereda estreita da memória atravessa gerações e paramos no Manigoto, aldeia fria de clima quente de peripécias; podemos também dizer fria de sentimentos sociais, quente de sentimentos amorosos.
     Assim preparados entramos na casa do imaginário da aldeia – o “Imaginário” dar-lhe-á voz e cor – no ambiente típico da intriga comunitária onde não falta a figura tradicional do prior (bonacheirão, alegre, … interesseiro) e da comadre vicentina (esta não é casamenteira, mas prefere “casar” ela mesma). Pois, o padre Fragoso faz-nos regressar à infância, aos tempos em que o prior era (ou devia ser) a figura pacificadora da vida da aldeia, aquele que mediava conflitos, orientava vocações, … Este padre Fragoso “pega” no jovem António e orienta-o para o seminário não porque ache que tenha vocação sacerdotal, mas para ver se lhe orienta a educação que os pais parecem não conseguir dar-lhe. Ora este António é o rebelde da aldeia que passa a vida a fazer tropelias, a pregar partidas não só à Ti Patrocínia, mas até às colegas de escola que fecha no galinheiro e ainda ao padre Fragoso a quem fecha um burro selvagem no campanário da igreja. Já vemos que nem o sagrado escapa às suas traquinices. Ora este António aparece-nos depois já padre a tomar posse da freguesia, entronizado pelo bispo e rodeado da aldeia. Porém, entre as paroquianas está Maria, a companheira de infância e de brincadeiras, que lhe desperta a paixão antiga e que revela que afinal tinha sido empurrado para aquela vocação de padre que, afinal, não tinha. E, assim, num terceiro momento, vemo-lo a ir a Roma pedir ao Papa a anulação dos votos para casar com a sua amada. Mas a viagem é longa e as peripécias sucedem-se na intriga dramática da ação e tem de ir à Índia em missão. Daí regressa passado um ano precisamente seis meses antes do casamento programado da sua amada com um homem viúvo do Barregão. Voltamos então ao imaginário do Manigoto e encontramos o António no Poço da Risca recolhido/escondido sem saber o que fazer à vida até que lhe “cai no poço” o seu irmão Artur que lhe diz que afinal a sua amada continua a pensar nele e a amá-lo e que, se saírem de lá, ainda vai a tempo de impedir o casamento. Acontece deste modo a recuperação da verdade dramática e lá se realiza o casamento desejado.
    Esta, resumidamente, a vis dramática da peça que o autor soube entretecer de maneira hábil perdendo-se às vezes uma certa unidade sequencial necessária, mas difícil de fazer de outra maneira já que a tarefa de misturar o verosímil com o imaginário popular do Manigoto foi decerto tarefa ingente. De salientar a conseguida viagem ao passado e a recuperação de memórias da aldeia com o esforço, referido na introdução, de ir ao local e ouvir da boca dos habitantes aquilo que é distintivo desse passado comunitário. O autor reconhece na introdução a possível traição à memória recuperada da aldeia, mas porque a literariedade não se compadece com a verdade nua e crua. (Mexer com a memória coletiva de um povo é um ato de traição constante à fidelidade dos factos. – p.7). E como nessa memória às vezes o material fala mais que as pessoas o autor reconhece que tentou ouvir as pedras as ruas e as casas abandonadas da aldeia. (Antes de ouvir as pessoas, ouviram-se as pedras. E foi daqui que tudo nasceu! A casa tem o seu lugar central em toda a peça, não fosse ela a guardiã da memória – p.8).
     Temos deste modo um peça em que se faz uma viagem ao passado presentificando muito do imaginário de um povo que neste caso é o Manigoto, mas que poderia ser qualquer aldeia perdida desta beira-serra. E se o texto e a vida são circulares regresso à questão inicial:  A casa da memória não será também a memória de uma casa?

José Monteiro


(recensão crítica publicada In: Revista Praça Velha n.º 33. – Guarda: NAC/ CMG, Julho de 2013.)


quarta-feira, julho 02, 2014

Recensão crítica ao opúsculo "O convento", por Honorato Esteves









“O Convento”, de Daniel António Neto Rocha

O Convento do Senhor Bom Jesus, ou Convento do Mato Grosso, é indissociável do imaginário de Famalicão. Não será de estranhar, pois, que o imaginário de Daniel Rocha, mais do que a atração do labirinto de silvas, muros, portas e postigos, a que hoje se reduz a parte (des)habitada do Convento, tenha sentido o fascínio da lenda sobre a sua origem e a sua ligação à imagem do Senhor Bom Jesus – objeto continuado da veneração das gentes de Famalicão e arredores.
A história prende a imaginação e a curiosidade do amigo leitor, num tom agradável, entre a crónica e a novela exemplar. Como diria Garrett, conta-se em duas palavras e romanceia uma estória mil vezes passada de boca em boca, à qual o tempo já somou tantos pontos quantos os contadores:
Uma jovem pastora, Madalena, encontra uma pequena imagem de Cristo crucificado, que, fascinada, leva para casa e mostra aos pais. A seguir, vem o facto extraordinário: nos dias que se seguem, perante o pasmo e a excitação cautelosa da família, a misteriosa imagem teima em desaparecer da casa da pastora, para reaparecer no ermo onde pela primeira vez fora encontrada… Pelo meio, a evocação da aldeia de Famalicão nos primeiros anos do século XVI – a pobreza, a religiosidade, os medos do povo e até uma tragédia, absurda e anacrónica como as tragédias de hoje.
Na verdade, O Convento reinventa a velha lenda oral, afastando-se deliberadamente da sua versão mais comum: A pastora, que era anónima e de Valhelhas, vive agora em Famalicão e chama-se Madalena (pretexto para introduzir no enredo a memória das ruínas que já foram a pitoresca capela de Santa Maria Madalena); O frade descrente que – reza a tradição – picou a sagrada imagem e padeceu horríveis maleitas por isso, dá lugar à figura humanista e esclarecida do bom Padre João; Quanto a D. Rodrigo de Castro, senhor de Valhelhas, não mais que uma referência lacónica…
O autor evitou, pois, a tentação de parafrasear a tradição ou de ”fazer crónica” para memória futura. Em boa hora, diga-se: importará a verdade para o caso? Que verdade há nas lendas, para além dos lugares e das pedras – mesmo que o povo acredite?
«A verdade é mais estranha do que a ficção», dizia Jim Morrison. Forjada na rivalidade secular entre Famalicão e Valhelhas, a velha lenda surge matizada de fé – mas também de uma beleza triste e efémera, na evocação do destino da família anónima que se extingue, entre os absurdos da vida e os insondáveis desígnios do Senhor.
Quanto ao convento, que as pedras contem a história…

Honorato Esteves


(recensão crítica publicada In: Revista Praça Velha n.º 34. – Guarda: NAC/ CMG, Maio de 2014.)


domingo, junho 01, 2014

Li: "O Menino Rei", de Carlos Carvalheira




Os espaços vazios: O Menino Rei, de Carlos Carvalheira



Os homens precisam de monstros para se tornarem humanos.

(José Gil)




Há quem diga que o espaço do “já contado” é território proibido e que qualquer acrescento ou substituição de tópicos será crime de “lesa majestade”. A ser assim o entendimento do leitor do processo criativo que está implícito na escrita, fica o conselho: não leiam este livro, livrinho ou opúsculo!

Assente nos textos bíblicos de Mateus, o mais atento dos autores do Novo Testamento à questão do nascimento, sobrevivência e crescimento de Jesus da Galileia, o autor, Carlos Carvalheira, concebe um pequeno conto que vai preencher muitos dos espaços vazios que se se reconhecem nos textos dos Evangelhos. Carvalheira desconstrói a visão ocidentalizada da ira de Herodes (como se sabe, o governador sanguinário) e constrói-a segundo uma “visão nova” onde o perseguidor do Menino se torna num dos centros da acção. E aí está a riqueza desta narrativa “em dois andamentos”. Por um lado, o nascimento e a fuga para o Egipto com a finalidade de proteger o recém-nascido. Pelo outro, a notícia do nascimento e a perseguição movida por Herodes. A novidade, que também apelidaremos como “Toque de Midas criativo”, está no tratamento que o autor dá aos espaços não preenchidos nos textos bíblicos e que consistem na categorização do medo sentido pelos fugitivos e pelo perseguidor. Se os fugitivos temem pela vida do “Menino de olhos grandes e com caracóis nos cabelos” e pelas suas próprias, o perseguidor, com traços de monstro insaciável, teme pelo fim do seu espaço (consubstanciado, ironicamente, em toda a opulência da posse de bens materiais e do direito a mandar) enquanto “todo-poderoso”. O autor, segundo nos parece, estabelece aqui um curioso e bem conseguido paralelismo com os tempos actuais, onde a perseguição ao mais fraco com a finalidade de se manterem os lugares de destaque permanece uma evidência social impossível de se menosprezar ou esconder. Neste ponto, uma interrogação parece ganhar destaque e hipóteses de ressoar para além da leitura: até que ponto estamos dispostos a chegar para conseguirmos manter o estatuto social? Não existe uma resposta, ou não se pretenderá dar resposta a esta pergunta, funcionando o conto como catalisador da reflexão para além das barreiras da própria história. Como refere José Gil (no texto “Metafenomenologia da monstruosidade: o devir-monstro”), e como nos parece que Carlos Carvalheira pretende com o seu conto, nós exigimos mais dos monstros, pedimos-lhes, justamente, que nos inquietem, que nos provoquem vertigens, que abalem permanentemente as nossas mais sólidas certezas; porque necessitamos de certezas sobre a nossa identidade humana ameaçada de indefinição. Os monstros, felizmente, existem não para nos mostrar o que não somos, mas o que poderíamos ser. Entre estes dois pólos, entre uma possibilidade negativa e um acaso possível, tentamos situar a nossa humanidade de homens.” Ou seja, o conto vem revelar que a sociedade de hoje precisa de “monstros” que permitam a nossa localização enquanto homens, entendendo-se estes homens como elementos harmonizadores de uma existência comum. Herodes ganha, portanto, o direito de ser o centro da acção desde a primeira até à última página, só perdendo esta centralidade nas últimas linhas do conto quando (levantem-se em defesa da pureza do “verbo inicial”) o Menino Rei lhe dirige algumas palavras plenas de ocasião e de ingenuidade. Os dois planos narrativos interagem por fim e a distância que os afasta transforma-se no inusitado e no criativo do momento, rendendo-se o “monstro” perante a fragilidade do Menino.

Um conto em forma infantil (notem-se as repetições, as aliterações e a recorrência, na sua maioria, a um vocabulário simples e claramente perceptível), mas com um subtexto forte e socialmente capaz de provocar no leitor atento uma visão diferente da forma como o mundo de hoje se manifesta.



Guarda, Abril de 2014

Daniel António Neto Rocha

(recensão crítica publicada In: Revista Praça Velha n.º 34. – Guarda: NAC/ CMG, Maio de 2014. – p. 224 a 225.)

terça-feira, setembro 10, 2013

Li: Acidente Poético Fatal, de Américo Rodrigues

É já um texto antigo, ou melhor, um texto com cerca de um ano, mas com o fim do blogue "Café Mondego" ficou escondido nas páginas da revista cultural Praça Velha, n.º 31. Com a aproximação do lançamento do novo livro do Américo Rodrigues, decidi resgatar esta minha recensão para o formato digital. Esta que lêem é a versão alargada da recensão que podem ler na já citada edição da revista guardense.



A “palavra essencial” esquecida: acidente poético fatal, de Américo Rodrigues

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos
frente ao precipício
e cair verticalmente no vício 
(Mário Cesariny)

Do autor, Américo Rodrigues (n. 1961), não haverá pouco a dizer. É um nome incontornável da história cultural recente (dos anos 80 à actualidade) da cidade da Guarda e será uma referência nacional da literatura e das artes em geral. Podemos chamar-lhe poeta, actor, dramaturgo, encenador, cronista ou, na nossa opinião, performer. Todos estes nomes lhe estão ligados umbilicalmente e todos lhe assentam na perfeição, basta observar com atenção a sua longa produção artística. O seu trajecto enquanto poeta é já longo e a sua lista de publicações é extensa - Na nuca (1982), Lá fora: o segredo (1986), A estreia de outro gesto (1989), Património de afectos (1995), Vir ao nascedoiro e outras histórias (1996), Instante exacto (1997), Despertar do funâmbulo (2000), O mundo dos outros (2000), Até o anjo é da Guarda (2000), Panfleto contra a Guarda (2002), Uma pedra na mão (2002), Obra  completa – revista e aumentada (2002), O mal – a incrível estória do homem-macaco-português (2003), A tremenda importância do kazoo na evolução da consciência humana (2003), Escatologia (2003), Os nomes da terra (2003), A fábrica de sais de rádio do Barracão (2005), Aorta Tocante (2005), O céu da boca (2008), Escrevo-Risco (2009) e Cicatriz:ando (2009) -, compreendendo obras que vão do “vulgar” livro até aos objectos poéticos nas suas mais diversas realizações.
Das influências do autor saberemos um pouco mais conforme o conhecimento que tivermos das suas próprias produções. Se atentarmos neste seu percurso artístico e poético, verificamos que recebe várias influências teatrais e performativas, nomeadamente no que diz respeito ao trabalho experimental com a voz ao nível do teatro (é importante destacar o estágio que efectuou com Catherine Dasté, em Paris, no ano de 1979). Este trabalho com a voz é completamente inovador no Portugal dos anos 80 e dá-lhe, desde aí até hoje, o estatuto de único poeta sonoro português e um dos principais elementos do movimento poético experimental dos últimos trinta anos. Mas interessa pressentir não só as influências experimentais. Também ao nível das influências poéticas mais formais, a sua capacidade de absorção rege-se pelo caminho mais marginal (em jeito de confissão, diz o autor que a “culpa” foi de um bibliotecário que trabalhava na antiga biblioteca itinerante – a mítica carrinha vermelha da Gulbenkian – que lhe aconselhava sempre a leitura de poetas como Herberto Helder, Mário Cesariny, Ramos Rosa, entre outros). A sua poesia não segue a lógica dos poetas presencistas ou neo-realistas, apesar de, em alguns momentos deste livro que analisamos, se pressentirem algumas dessas temáticas relacionadas com a denúncia do autoritarismo e da injustiça social (no que ao neo-realismo diz respeito), e duma presença constante do traço original (tão querido aos presencistas). É, sim, uma poesia de influência surrealista, mergulhada na ideia que é lançada por Mário Cesariny no artigo “Mensagem e ilusão do acontecimento surrealista”, inscrito no n.º 1 da Revista Pirâmide: “Também porque o surrealismo se inscreve numa zona de conhecimento que mesmo nos pontos globais do seu percurso (…) será sempre parcela e nunca soma, pois das muitas coisas com que tem a ver tem a ver sobretudo com o amor do futuro, é prova de inquirição que cabe a cada homem para continuação de novo homem que vem.” Mas nem só de surrealismo se reveste, pois o espírito do movimento Dada (consubstanciado no espírito reaccionário perante injustiças sociais protagonizadas pela sociedade burguesa e pelo seu sistema racional) está presente como o “ruído” incómodo que a sua poesia cria à sociedade que se rege pela criação de um status quo que quer permanecer intocável. Estas, últimas, serão as duas principais influências de Américo Rodrigues ao nível da poesia.
Algumas questões já começaram a ser afloradas nas linhas anteriores, sendo que este acidente poético fatal retoma algumas das influências já referidas, mas (e lá vem o cunho de originalidade que “herdou”, talvez, de Almada Negreiros) não é só isso. Em acidente poético fatal, Américo Rodrigues apresenta aquilo a que poderemos chamar poesia performativa, sabendo nós de antemão que é um termo vago e, possivelmente, impreciso ao nível da tão necessária objectividade da crítica de teor académico. Voltaremos a ele no final. O título é sugestivo e aposta desde logo num recurso de enriquecimento textual – a adjectivação – que cria na expressão uma curiosa relação de dependência entre o adjectivo “poético” e o nome “acidente” que pode desde logo ser lido pelo absurdo criativo que proporciona. Como sabemos, no campo da poesia não existem acidentes fatais. Pode haver imprecisões, más escolhas, maus poemas, maus autores ou más críticas, mas nunca se revelam fatais (no sentido ontogénico do termo). Logo, a escolha deste título aposta na conjugação da estranheza e da sua utilidade para a criação de universos simbólicos e esteticamente ricos, e revela-se tremendamente certeira. Já ao nível das relações gramaticais entre os vários constituintes do título, a escolha foi ainda mais acertada. Se tentarmos encontrar uma tabela que analise a importância das três palavras na expressão que se constitui como título, poderíamos considerar que o centro do grupo nominal de que a expressão se reveste é, de facto, um adjectivo. Isto, como sabemos, é um erro ao nível da análise gramatical. Pensamos que Américo Rodrigues teve consciência disso no poema que empresta o título ao livro (pág. 48):

Declaração   
Para os devidos
efeitos
(e feitos)
declaro que em caso
de acidente poético fatal
deixo
dou
doo
(…)

Como se percebe, através da leitura atenta de todo o poema, o poeta dá-nos a impressão de estar a comunicar os seus últimos desejos testamentários, mas consciente de que o faz apenas com elementos não usuais no tipo de texto que normalmente serve de testamento. Ao nível da aproximação estética deste tipo de estratégia poética a outros poetas portugueses, sabemos que a poesia de Herberto Helder – curiosamente um dos agraciados com os bens testamentários – também opta por este jogo de intersecção de planos diferenciados, ou, na expressão de Maria Lúcia Dal Farra, pela opção dos “campos semânticos cruzados”. Convém referir-se que esta estratégia, colada a Herberto Helder, é utilizada desde o primeiro modernismo português (por exemplo, “Chuva oblíqua” de Fernando Pessoa) e por todos os poetas e demais artistas que usaram o surrealismo como ponto de origem da sua criação artística. Depois desta primeira incursão pelo texto, e usando-a ainda, pensamos que é importante referir e estar atento à forma como o poeta trata o tema da morte. Neste poema (“Declaração”) encontramos um testamento, que alude à organização do homem perante a inevitabilidade da morte. Noutros poemas a morte surge associada ao suicídio (“Os rapazes”, pág. 6), ao anúncio da morte ou da celebração dos mortos (“Os mortos”, pág. 10), aos epitáfios que hão-de encimar as pedras tumulares (“Epitáfios”, pág.s 13 e 14), e outros (principalmente em “Poeta Local” (pág. 17), “Sete telefonemas” (pág. 40) e “Casas” (pág. 57). Não pensemos no entanto que aqui a morte é vista de forma literal, esperando a existência de uma encenação romântica. A morte é antes um motivo de sarcasmo, de crítica ou de sátira, perante as motivações de escrita do poema. O grande tema deste acidente poético fatal, porém, é outro: o humor, por vezes negro, que passa pelo conjunto de poemas e que, de forma satírica ou sarcástica, aponta para a forma crítica como Américo Rodrigues olha o mundo que o rodeia. Como exemplo de crítica social e, também, moral, leia-se (pág. 23)

Projecto
Dão-me papas
Duas vezes por dia
Dão-me remédios
Todos os dias
(…)

Leiam-se ainda “Vêm” (pág. 12), “Ninho” (pág. 8), “A entrega” (pág. 18) e “Não Há” (pág. 54), entre outros. Podemos verificar que existe neste ponto a aproximação ao Cesariny da Nobilíssima Visão, onde o humor seco e crítico se expande de uma forma quase invisível (leia-se o poema “Pastelaria”). Numa característica que tem como compromisso o humor crítico, verificamos outra das estratégias que foi também cara aos surrealistas e que Américo Rodrigues utiliza de forma bastante acutilante: os animais (seres irracionais) como representação de uma realidade criticável e negativa (pág. 5):

O pequeno boi
O pequeno boi
cinzento
claro
ruminando.
(…)

A este nível, verificamos que existe uma correspondência de utilizações de figuras animalescas como forma de intensificar sentidos, regra geral pejorativos, com outro dos grandes autores portugueses que tiveram uma passagem pelo surrealismo: Alexandre O’Neill. Como exemplos da obra de O’Neill, leiam-se “Galo de Barcelos” e “Made in Portugal”. Na obra em análise, verifiquem-se também “Poemas da transumância” (pág. 42) e “Visita guiada” (pág. 27), onde a utilização dos animais como forma de crítica é efectuada de forma singular.
Poderíamos, ainda, aqui salientar um conjunto de estratégias que demonstram bem a grande riqueza e o enorme valor literário deste pequeno acidente poético fatal. No entanto, deixaremos apenas, visto que importa aguçar o apetite dos potenciais leitores e não impor uma leitura, algumas pistas de leitura que poderão ajudar à construção de horizontes significativos individuais. Atente-se então nas várias imagens visuais criadas com mestria, observem-se algumas construções e desconstruções de palavras que soam a música, oiçam-se alguns aspectos fónicos que lembram os trava-línguas, visualize-se a exploração da poesia experimental e compreenda-se a utilização do calão como catarse da emoção violenta (quase um grito dadaísta).
Existem ainda duas pequenas referências que fazem com que a este livro de Américo Rodrigues possa ser visto como uma obra universal: a primeira demonstra-nos essa validade universal da obra e a segunda dá a explicação do termo poesia performativa. Em primeiro lugar, Carl-Gustav Bjurström, tradutor de Lars Gustafsson para a língua francesa, no prefácio à obra A morte de um apicultor, destaca uma estratégia discursiva deste escritor sueco a que dá o nome de “trompe l’oeil”. Este termo, numa tradução muito livre e muito pouco literal, significa “engano consciente” e consiste na apresentação de elementos que são demasiado estranhos e acutilantes para não serem falsos. Pois bem, Américo Rodrigues utiliza, neste livro, esta estratégia de uma forma extremamente bem conseguida (pág. 16):     

Abadia
Na abadia franciscana de Monteveglio
Há um sistema inovador
(…)

Aqui, o “trompe l’oeil” surge nos versos “eu próprio pedi que Frei Giovanni della Annunziata/ ali me confessasse.” Estaria o poeta a tentar redimir-se da imagem ridícula que cola às vetustas catedrais católicas do poema “Ninho”, que parece estar colocado, de forma estratégica, três páginas atrás? A estranheza apodera-se de nós no verso referido, mas é resolvido logo nos versos que o procedem. Depois esclarece por completo a estranheza no poema “Atendimento automático” que não é mais do que uma brilhante resolução da questão com que o ser humano religioso se interroga sempre que é atingido por uma desgraça: mas onde é que estava deus? Desta forma, este “trompe l’oeil” vem adensar ainda mais a imagem iconoclasta deste sujeito poético, pois são utilizadas as instituições de toda a ordem como elementos humorísticos através da ironia e do sarcasmo. Em segundo lugar, e para elucidar a dúvida que nos acompanha desde o início, pensamos que este livro que Américo Rodrigues nos apresenta é um excelente exemplo da poesia performativa porque se situa no centro da viagem entre a poesia sonora e a poesia lírica (iniciada a chegada a esta poesia mais “literal” a partir da experiência poética que é a obra Cicatriz:ando), contendo em doses bem medidas o melhor das duas: a forma rítmica e musicada de uma, e o conteúdo simbólico da outra.     
            Por fim, convém salientar um “pequeno pormenor” que tem grande importância para o conjunto da obra de Américo Rodrigues. Esperava-se que o final do livro fosse muito corrosivo e de um humor tremendamente sarcástico, visto que por todo o livro é esse o ingrediente principal. No entanto, e de forma surpreendente, o poeta oferece-nos uma ponte de escape simbólica para uma poesia de temática mais intimista. Assim, guarda os poemas “Insónia” (pág. 58) e “Não me acordes” (pág. 59) para fazer uma transferência de planos entre este acidente poético fatal e a obra seguinte, que terá como pontos de partida o “sítio húmido/ da noite” e os “interstícios da pele”, ou seja, a “palavra essencial” recuperada.  

Guarda, 05 de Maio de 2012
Daniel António Neto Rocha

(Versão mais curta In: Revista Praça Velha n.º 31. – Guarda: NAC/ CMG, Junho de 2012. – p. 201 a 205.)