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domingo, setembro 11, 2011

Vi: Tommy (1975), de Ken Russell


Tommy é um filme, que se baseia na Ópera Rock escrita pelo grupo The Who em 1969, marcadamente crítico da sociedade dos anos 70. Para além desta visão de Ken Russell ser uma sátira à vida consumista dessa época, é ainda um imenso jogo de metáforas com ligação religiosa e social, pretendendo mostrar todos os vícios e crenças que então (e agora?) impregnavam a sociedade. É ainda uma tentativa, aproveitando a ascensão e aparecimento do filme Jesus Christ Superstar (baseado na Ópera Rock de Andrew Lloid Webber), de parodiar alguns dos aspectos mais marcantes deste filme (por exemplo, transforma a via sacra num continuo de maus tratos sobre um deficiente). O que este Tommy nos apresenta é um dedo acusador sobre uma sociedade crente no poder dos mitos recém-chegados, apresentados através de um ritmo rápido e constante (note-se a influência que o Rock tem na divulgação de sentidos) e de um apelo à imagem estranha e, por vezes, surreal. Não é um filme de fácil descodificação (até pela presença de um conjunto de signos e símbolos que emergem vindos de áreas tão distintas como a economia e a religião, a pintura e os direitos humanos, a música e a literatura, etc.), mas o que é estranho tende a entranhar-se mais facilmente e este Tommy não deixa ninguém indiferente pela incrível diferença em apresentar discussões culturais e sociais indispensáveis na época (e ainda hoje!), utilizando para isso um tipo de música que desde sempre esteve ligado ao mundo do álcool e das drogas. Justiça divina? Talvez, o grande triunfo deste filme é conseguir, através da explanação imagética dos problemas, que a crítica feroz a essas mesmas questões seja feita perante a constatação do ridículo.

O filme apresenta uma espécie de circularidade (note-se que o início é o aparecimento, junto ao sol, do pai de Tommy e que o final mostra o filho a assumir a posição de onde se partira para o desenvolvimento da acção) que pretenderá significar, muito sumariamente, o processo biológico do crescimento físico e mental do homem. Este início é surdo, ou melhor, não tem palavras, pois as palavras necessitam de trabalho e de uma comunicação efectiva (não necessária, segundo a intenção comunicativa do realizador, a uma relação reprodutiva). Note-se, ao nível da mera curiosidade, que o pai biológico de Tommy não usa uma única palavra. Não lhe ouvimos a voz e, o que é certo, não precisamos de a ouvir. O que significa esta mudez paterna? Veja-se a tradição religiosa. O pai (Deus) não se ouve. Já o ouviram? Apenas seguimos os seus ensinamentos (exemplares e puros), não necessitando de uma confirmação oral de forma a entendê-lo e a segui-lo. É isso que acontece em Tommy. A figura paterna é a imagem da dedicação e da defesa da família (vai para a guerra para defender o filho que há-de vir). Por lá fica, supostamente, morto. Após a notícia do desaparecimento da figura masculina (associada a Deus?), surgem finalmente as palavras associadas ao nascimento de Tommy. Reconhece-se neste passo toda a simbologia do nascimento de um predestinado. Ele é o foco da atenção. Ele é o salvador. Ele é o desejado.
Tommy é já um rapazinho (com cerca de 5 anos?) quando acontece a morte, perante os seus olhos, do seu pai biológico. Passo a explicar: a mãe e o filho seguem com a vida depois de pensarem que o pai está morto, mas afinal de contas está vivo; no dia em que regressa a casa, a mãe já se encontra a viver com outro homem; Bernie (pai adoptivo), perante a entrada imprevisível do pai no quarto, mata-o; Tommy assiste e entra em choque, começando a viver num mundo só dele onde o pai é o “seu Deus”. A partir deste momento entramos numa espiral de acontecimentos onde se critica o desajuste de tratamento daqueles que são diferentes (deficientes). A evolução é natural e quando damos por nós estamos perante um Tommy crescido (apresenta-se perante nós Roger Daltrey, vocalista do grupo The Who) que inicia a aprendizagem, por vezes, muito cruel da vida (qual via sacra): surge a busca de soluções através de falsos ídolos (a cura é procurada num templo que honra e diviniza Marilyn Monroe, qual deusa que cura os inválidos através do contacto com droga e álcool); aparece o primeiro contacto com as relações sexuais, apresentadas como uma droga capaz de curar; é submetido a uma tortura violenta e é violado pelos próprios familiares; e é ignorado pelos próprios pais. Vivendo num retiro interior, onde contacta com a figura do pai (parecendo em dados momentos o seu refúgio religioso), surge (espantem-se!) o milagre que o transforma no centro do mundo: consegue tornar-se campeão de “pinball”! Este acto faz com que a família, mãe e padrasto, enriqueçam e comecem a ter uma vida desafogada, permitindo também o contacto (crítica às hipóteses de acesso a bens de saúde pública!) da doença de Tommy com os melhores médicos.
No meio desta necessidade de estabilidade familiar, Tommy acorda do sono profundo através de uma violenta queda. A partir daqui, assume uma postura deificada e cria uma seita que pretende a busca de uma harmonia interior e exterior. Como todos os falsos ídolos e falsos profetas (apesar de na índole Tommy demonstrar ter óptimas intenções), dada a exploração que é feita dos crentes, cai por terra a sua intenção de educar mentes e atitudes, através do contacto cego e desinteressado com o “pinball”.
O filme termina com o fechar do círculo. Após o ataque que leva à morte a sua mãe e o seu padrasto, Tommy inicia no meio das chamas o seu caminho de ascensão. Passando por todos os espaços onde inicialmente o pai e a mãe pareciam viver e conviver em profunda harmonia, dá-se o fechamento do círculo e o fim do filme.

Este é, talvez, o filme que apela mais a um entendimento daquilo que é o encontro semiótico entre diversas realidades. Neste caso, precisamos atender à ficção que é tratada no registo cinematográfico e a toda uma cultura ocidental, que se iniciou com a assumpção da religião católica e que se foi desenrolando com a assumpção da "religião" capitalista. Filme tremendo pelo fantástico trabalho musical dos The Who e pela desconcertante visão criativa de Ken Russell. Se querem um filme completo, ei-lo!

P.S. - Vão ter uma surpresa relativamente aos actores que desfilam neste filme.