terça-feira, dezembro 15, 2020

Respirar lá dentro... no escuro...


Os dias em que se vive são intensos e belos, cheios de aromas e de impulsos que nos apertam e cativam. Dentro deles a vida parece sem importância e plenamente nossa, integralmente possuída e adaptada às nossas vontades, desejos e ambições. Dentro desta somos livres e vivemos e respiramos e espera-se que nos deixem viver e perseguir sonhos com a mesma vontade com que nós desejamos a existência dos sonhos dos outros e as suas próprias conquistas.

Não invejo as conquistas dos outros. Nunca invejei. Desde pequeno, desde a mais tenra idade, sempre me lembro de partilhar e de dar a quem me rodeava aquilo que eu tinha ou que me era dado, naquele breve momento, possuir como meu. Desde essa altura, tenho muitas dificuldades em descobrir um só instante em que a inveja ou o desejo de ter algo meu fosse uma realidade que prejudicasse alguém. Sim, sempre pensei mais nos outros do que em mim. Cresci, continuei a dar o que tinha e o que não tinha, senti-me tantas e tantas vezes mal por ser tantas e tantas vezes prejudicado por não ser filho de pais que fazem parte de grupos de influência e que facilitam a vida dos filhos. Mesmo assim, continuei sempre a dar o pouco que tinha.

Neste instante de agora, tantos e tantos anos depois, sinto-me no fim de uma linha. Não consigo ser diferente, tento e tento perseguir o ser que sempre fui na relação com os outros, seja dentro da família ou fora dela, tento, no entanto, ser feliz com aquilo que tenho e que sinto que consegui de forma honesta, trabalhadora e simples. Não vou ser diferente daquilo que fui, pois não sou um ser diferente daquilo que aprendi e que me fez o homem que todos conhecem. Mas sinto que já só consigo respirar lá dentro, no escuro, escondido de quem, afinal, deveria ajudar-me a respirar.   

terça-feira, setembro 22, 2020

Em Homenagem: Eng. Maia e Professor Pires

 

A vida é feita de nadas:
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas… pelo vento;
De casas de moradia
Caídas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;

De poeira;
De sombra de uma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu Pai a erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha.

 

 

 

Comecei por ler um poema de Miguel Torga que, espero, possa ser a porta de entrada para o entendimento de todas as outras palavras que se seguem.

Coube-me, hoje, a responsabilidade de, nesta tarde de tempos inquietos, lembrar e partilhar convosco um pouco da vida e gestos de duas pedras basilares do Instituto de Gouveia que este ano partiram, como todos sabemos, em circunstâncias difíceis de entender. Difíceis de entender porque a vida nos tem habituado a que a longevidade seja uma realidade e também porque nada nem ninguém nos prepara para a partida de amigos que nos fazem bem. E estes que nos partiram, meus caros, eram pessoas de bem e que nos faziam bem. E digo “partiram” no sentido múltiplo da palavra, que implica afastamento mas também desagregação ou destruição. De uma forma mais simples, todos sentimos, desde a dupla partida, a dor e uma sensação de desajuste que o tempo, dizem, tratará de aligeirar.

Tinham, estes que lembramos, defeitos? Certamente teriam. Tinham momentos menos bons? De certeza que sim. Mas tinham, acima de tudo, uma presença que a todos agradava e que a todos completava. Falo, obviamente, e digo-o como eu os chamava, do Engenheiro Maia e do Pires. Desculpem-me esta fuga para um discurso mais informal, eventualmente menos laudatório, mas os dois homens que eu conheci tinham os pés na terra e era dela que se erguiam, tal como a “videira” de que falava Torga.

Espíritos inquietos, digo eu, que se mostravam através do gosto pelas artes e pela cultura, como sempre, e bem!, fizeram questão de vincar, seja através da ligação às direções de várias associações culturais do concelho, seja através da dedicação pessoal e cuidadosa à prática e cultivo dessa mesma veia criativa. No caso do Pires através do gesto fino e certeiro com que nasciam desenhos, pinturas ou uma ou outra personagem em momentos teatrais. No caso do Engenheiro Maia através do gesto amplo e paternal com que desafiava, acolhia, regava e encorajava as ideias que, muitas vezes, tantos de nós lhe propúnhamos. Poderíamos pensar que (e nos dias de hoje seria o mais óbvio!) o gesto fino e o gesto amplo entrariam em conflito. E talvez, por vezes, as ideias não fossem completamente comuns. Mas os homens que conheci e que comigo, e com todos nós, partilharam momentos, tinham o dom da palavra. E digo palavra porque o ponto de encontro entre todos é, e deve continuar a ser, o da partilha da palavra. O diálogo que é como a imagem “da mãe a fazer a trança à filha”: admirável e digno de atenção.

Felizmente todos tivemos a oportunidade de partilhar a palavra com eles. Seja no gabinete da Direção, onde ao final do dia, tantas vezes, se constituía uma “mesa redonda” de troca de opiniões, de preocupações, mas também de desejos e de ambições. Tudo sempre regado com uma boa dose de humor, e de fina ironia, que espicaçava os sorrisos e nos dava a exacta dimensão dos dias.

Caros amigos, do Pires conhecemos o caminhar, desde tenra idade, desde África até Gouveia e por aqui marcar um espaço ímpar. Do Engenheiro Maia conhecemos a sua ligação à terra, desde criança, nas difíceis caminhadas pelos montes, mas também na busca incessante por melhor servir, por saber mais sobre esta mesma terra e por descobrir novos caminhos para ela.

Os dois souberam, tal como o pai que ergue a videira, abraçar a missão de erguer mais e mais o Instituto de Gouveia a cada dia que lhe dedicaram.

Hoje agradecemos nós aos dois pelos sorrisos que partilhámos juntos!



Gouveia, 19 de Setembro de 2020




(Vídeo montado pelo Filipe para o espectáculo "O Século em que a Terra Parou", apreciado por estes que em palavras se encontram)
 

terça-feira, março 17, 2020

Acerca do Desterro #2 - É assim tão difícil tomarmos conta de nós em liberdade?

Não sei como está a ser nas restantes casas, mas cá pela minha tem havido alguma dificuldade em fazer com que dois pequenos rapazes, habituados a correr pelas ruas da aldeia fiquem emparcelados. Claro que tudo isto se deve ao desejo de conhecer o mundo, de soltar as asas e voar ao som da idade.
No caso dos mais velhos, responsáveis pela sua própria vida, será assim tão difícil perceber que ao colocarmos de parte a recomendação de nos suspendermos um pouco (poucos dias, comparados com os que desejamos viver livremente) estamos a colocar em risco muitas centenas de vidas?
Tenho pensado muito sobre tudo isto. Tenho pensado muito sobre as decisões que todos temos tomado em deixar de parte aquilo que é o nosso "ganha pão" para possibilitarmos que se ganhe tempo para o bem comum poder vencer. 

Daí que urge pedir a todos que fiquem quietos!
Daí que urge pedir a todos que peçam a familiares para ficarem onde estão e não se movimentem!
Daí que urge que esqueçam todos aquilo a que chamamos férias e que nem pensem em ir visitar os familiares mais velhos lá à aldeia!
Daí que urge pensar mais no outro do que em nós!

Todos temos telefones para contactar e para chegarmos junto daqueles de quem gostamos. Por isso, é urgente avisá-los de que, para o seu próprio bem, não os iremos visitar nos próximos tempos. 

Eu tenho saudades da minha avó, tenho saudades da minha mãe, tenho saudades de toda a minha família que está longe de mim, tenho saudades de todos as pessoas com quem partilho o gosto de fazer teatro, tenho saudades dos meus alunos e dos meus colegas. Sim, tenho saudades! Mas quero continuar a ter por mais algum tempo até que a minha presença não os coloque em risco a eles ou a deles a mim. 

É tempo de não ter pressa, para em breve nos abraçarmos! 
 

domingo, março 15, 2020

Acerca do Desterro #1 - Amor em tempos de Covid19

Não sei o que toda a gente pensa sobre os dias que vivemos, mas confesso-vos que ainda não consigo perceber bem esta realidade que nos caiu em cima. Estamos no papel de desterrados da nossa própria vida, ou melhor, da vida que tanto nos habituámos a viver. 
Ainda ontem, ou anteontem (em tão pouco tempo de desterro os dias começam a confundir-se), olhava pela janela de casa e pensava nos dias seguintes como momentos de contacto e de ligação em prol de projectos e aulas e amizades que tinham datas e lugares marcados. A aceleração pessoal, a excitação dos dias, a aproximação de datas para apresentar o resultado de meses de trabalho intenso e tão apaixonado... 
Hoje a incerteza já não é uma opção. Há a certeza de dias de afastamento físico e de projectos que poderão cair por terra. Há a certeza de um vida que irá mudar radicalmente até que o medo e o desconhecido possam de novo dar lugar ao sol que nos comanda e nos aquece os dias.
Mas é tempo de dar espaço e de ajudar os outros que estão, neste momento, na linha da frente de toda esta luta desenfreada pelo menor dano possível.
É para mostrar o nosso amor por médicos, enfermeiros, farmacêuticos, auxiliares e demais funcionários do sector da saúde que nós devemos proteger-nos e ficar em casa.
É para mostrar o nosso amor por cientistas, investigadores, forças de Proteção Civil que estão no terreno a contactar com doentes (como elementos da Cruz Vermelha e Bombeiros) que nós devemos proteger-nos e ficar em casa.
É para mostrar o nosso amor por quem de telefone em pulso gere com necessária calma o atendimento a milhares de pessoas que precisam de ajuda (seja por culpa deste inimigo cruel, seja por outras doenças) que nós devemos proteger-nos e ficar em casa.
É para mostrar o nosso amor pelas forças de segurança que precisarão de toda a nossa colaboração que nós devemos proteger-nos e ficar em casa.
É para mostrar o nosso amor pelas Forças Armadas que estarão, com toda a certeza, a suportar e a preparar-se para darem todo o seu apoio a tantas outras pessoas que nós devemos proteger-nos e ficar em casa.  
É para mostrar amor por todos aqueles que amamos (e que muitos de nós têm numa qualquer profissão que acima mencionei) que nós devemos proteger-nos e ficar em casa.
Se tivermos dúvidas sobre tudo isto, olhemos os rostos das pessoas que mais amamos e imaginemos tudo o que seremos capazes de fazer para as continuarmos a amar por muito e largos anos.

Os dias que se aproximam serão de adaptação a uma nova realidade.
Os dias que se aproximam irão, de certeza, assustar-nos.
Os dias que se aproximam irão ser de grande desconfiança.

Mas sabemos que estamos, de dentro das paredes das nossas casas, a ajudar todos aqueles que têm de estar lá fora a ganhar uma batalha que é de todos.

Vamos proteger-nos e ajudar a proteger todos aqueles de quem gostamos muito!