quarta-feira, fevereiro 18, 2015

Apresentação de dia 12 de "Tenho uma pedra na cabeça" na Guarda


Sou, penso eu, um afortunado por ter poucos mas bons amigos. E isso faz a diferença para quem, como eu, avança a passos largos acompanhado bem de perto pela velhice eterna. Mas... olvidemos a questão temporal.
Na passada 5.ª feira, dia 12, aproveitei o facto de ter de estar na Guarda para efectuar a apresentação do livro "Tenho uma pedra na cabeça", a minha mais recente edição. E, sabendo que era uma semana difícil para os que gostam de cultura e de poesia (muitos estiveram em ensaios para o "Galo do Entrudo"), avancei na pretensão com a consciência de quem sabe o que o espera. Não fiquei defraudado! A sala estava repleta de interesse, condensado em poucos mas bons ouvintes. Gostei de os ter por lá!
De seguida, o José Monteiro fez uma apresentação (que publicarei no final deste texto) muito boa e, como disse então, ensinou-me muitas coisas sobre a minha escrita. O professor António José Dias de Almeida e o Jos van den Hoogen leram, maravilhosamente, alguns poemas. No caso do Jos, foram apresentados dois dos poemas que ele traduziu e que vão integrar a "Bloemlezing 7+7+1" (perdoe-me Jos se não for assim), uma antologia bilingue - português e holandês - que terá uma tiragem limitada de 33 exemplares e terá outras particularidades (no início de Março darei mais informações). Por fim, aproveitei para agradecer a presença de todos os que me acompanharam neste dia e fiz algumas referências ao livro.
Gosto sempre de estar na Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço e gostei muito de encontrar lá a calmaria literária, mas gostei principalmente de encontrar lá a amizade.




Texto e poema de José Monteiro, ambos apresentados na sessão:


"Não é verdade que só o autor se apaixona pela obra. Também a obra se apaixona pelo seu autor. Na verdade é mesmo por isso que o autor se apaixona por ela."
 ANA HATHERLY

Um livro especialmente de poesia não se deixa apresentar, apresenta-se ele sozinho. É o rosto visível de alguém que investiu nele tudo o que tinha para dar, naquele momento. Outros virão de certeza melhores. Assim acontece neste “Tenho uma pedra” onde da escrita intimista, os poemas saem materializados em palavras que às vezes são pedras. Ora ter uma pedra na cabeça é um acto não-poético. Era!
Este livro de Daniel Rocha vem provar que ser artista é saber pegar na realidade e expô-la, é pegar numa pedra e expandi-la. Fazê-la viver. Torná-la expansiva. Quando comecei a ler o livro veio-me à lembrança o que diz Sophia na sua Arte Poética III:
O artista não é, e nunca foi, um homem isolado que vive no alto duma torre de marfim. O artista, mesmo aquele que mais se coloca à margem da convivência, influenciará necessariamente, através da sua obra, a vida e o destino dos outros. Mesmo que o artista escolha o isolamento como melhor condição de trabalho e criação, pelo simples facto de fazer uma obra de rigor, de verdade e de consciência ele irá contribuir para a formação duma consciência comum. Mesmo que fale somente de pedras ou de brisas a obra do artista vem sempre dizer-nos isto: Que não somos apenas animais acossados na luta pela sobrevivência mas que somos, por direito natural, herdeiros da liberdade e da dignidade do ser. (Arte poética III, Sophia)
Ora isto leva-nos às pedras do nosso autor. Ele próprio reconheceu que a pedra que esteve na sua cabeça – não interessa a localização exacta, se foi no lado esquerdo, anterior, posterior ou parietal – esteve Aprisionada num recanto escuro do cérebro, significa e interpreta, ao mesmo tempo que oferece leituras e compreensões. Partindo da sua forma significativa, a pedra entrega-se nas mãos, nos pés, nos olhos, na imaginação ou no objecto de desejo de vários tempos e modos, surgindo nua e desprovida de vida no final da leitura. E afinal aqui está tudo resumido, não seria preciso dizer mais. [Mas como ao outro poeta, também a mim surgiu uma pedra no caminho, com a tarefa mais difícil de vos apresentar essa pedra.]
     A poesia do autor já é nossa conhecida e também o é a sua preocupação com o tratamento a dar à palavra. E se ele nos oferece estes poemas é porque os julgou purgados através de um trabalho “improbus” horaciano e de polimento das palavras como se de pérolas se tratasse. Por isso estamos perante um conjunto de poemas quase perfeitos e com a exacta imperfeição de palavras cumprindo objectivos previamente definidos. Este livro pode ser assim aa sua arte poética.
Na minha leitura da obra saliento três tópicos:

1º Concepção de poeta e de poesia. O poeta é um rio, como refere no poema “Gotas de Pedra”, (17 – Talvez tu não o saibas, mas já fui um rio.) onde se faz a confluência (desaguam) de vários elementos sintetizando o que decorre de uma existência às vezes mineral e em que a pedra o obriga a desviar a efluência dos fluidos intelectuais.
A referida confluência existe no poema “conjugação”: em que o processo de criação vai desde o volitivo do acto, do verbo, passando pela mineralização inadvertida, pelo acto amatório julgado mesmo obsceno (delicado gesto obsceno 31), pela impressão da não existência enquanto ser e pelo desafio final da consciência da sua limitação. (Daí o verso final: Conjugo-te, enfim!) Essa consciência conduz ao grito expresso no título de “antes que a vida passe” que é uma retoma do tema clássico do tempus fugit ou, como se assume explicitamente, do tempus edax rerum (58 Ovídio).
A fluidez do poema converte mesmo a pedra em gotas e voltamos à imagem do rio e da consequente água. E assim se conjuga o concreto da pedra com a fluidez da água (17 o rio fluir rápido, 20 quente fluido, 28 fluidez dos tempos, 35 corrupio fluído) que por sua vez se torna também matéria poética. [Acho que uma das palavras chave da obra é mesmo fluir e seus derivados] Então o poeta assume-se como Narciso *(A água cansada de olhares / ressumava o futuro dos dias / e das gentes.58) e refugia-se na imagem do rio de palavras que brotam do peito, da boca e da cabeça (16) pois “tem mais palavras que a própria língua … no ritmo que lhe aprouver”*(17) Afinal o poeta, se não utilizar correctamente as palavras, pode matar / talvez de silêncio / as sílabas de liberdade / e as rimas ricas / dos versos. (44)
Ficamos também a saber que o que move o poeta afinal é Eros que alimenta Apolo e o faz suar de prazer (59), ou seja, a poesia tem consequentemente um carácter lúdico, prazeroso (comboio de corda) e Apolo fascina-se / pela petrificada figura. … A pedra excita Apolo / e Eros viola o seu / arco (60). Mas esta afirmação semeia dúvidas como estas: Apolo, o deus protector das Musas (na Grécia), submete-se a Eros? Ou é Apolo, deus do sol, que se deixa sombrear por Eros? Ou o poema necessita haurir de Eros apenas a excitação, o despertar para a realidade que a pedra significa?
Mas a imagem mais significativa nesta concepção de poeta é a do poema onde o escultor surge. Nada mais adequado do que o escultor, qual estatuário, qual artista, converter a simples pedra inerte numa obra de aperfeiçoamento em que haja vida. Os últimos versos são para mim a síntese perfeita de poeta e poesia. *(37/8)

2º A pedra como matéria poética. – O tema da pedra não é novo na poesia. Vem-nos imediatamente à memória o poema de Carlos Drummond de Andrade (No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho), talvez o poema mais conhecido da temática. Mas o que significa e interpreta esta pedra? Para o autor a pedra reveste várias espécies: a casinal (36, 47), a mística ou sagrada (pedra ara sacra 35), a mítica, a histórica, a lendária, a imaginária, a real, … *(66). Vou deter-me apenas nas duas primeiras.
A casinal joga ao destino com as palavras e obedece à predestinação com que os deuses jogam com os humanos. Não é por acaso que aparece no poema “Sísifo”, esse castigado exemplar, servindo aos humanos de lição empurrando indefinidamente a pedra por ter ousado infringir as regras dos deuses e ter voltado do Hades. É esta pedra representante do desafio que o poema constitui ou deve constituir em relação à ordem estabelecida? O poema “Matar” significa isso mesmo, a revolta contra o que está mal na sociedade. Ou significa a ousadia do aprisionamento de Tanatos (deus da morte) conseguindo a imortalidade através das palavras?
A mística ou sagrada, liga-se à presença implícita, facilmente adivinhada, da pedra angular bíblica que os construtores rejeitaram. A pedra / palavra será motivo poético se tiver esse carácter de segregação, separação do que é profano, do vulgo. Nessa altura ganhará vida e tornar-se-á representativa do verdadeiro valor do poema: missionar. E não é a única presença do sagrado pois pelo menos em dois poemas há referência ao leite e mel (54, 57) elementos messiânicos da ansiada terra prometida. Não já do desejo judaico no domínio dessa utopia, mas na possibilidade da nascitura pedra que se expande desfazendo o tiro natural da biologia.(25). A eterna ânsia de quebrar as leis da vida e conseguir assim a imortalidade.

3º As influências. Um bom escritor nunca deixa de revelar as influências recebidas das suas leituras quer em termos de poética quer em termos de educação. Ora neste livro há nitidamente várias fontes onde o autor bebeu.
Quanto a autores / poetas nota-se a presença silenciosa de Manuel António Pina nas temáticas abordadas e mesmo nas formas utilizadas. O já referido Carlos Drummond de Andrade (20). A loucura insistente de um Álvaro de Campos (64). Ovídio e as suas Metamorfoses na expressão referida acima “edax rerum (58). Ricardo Reis surge-nos inevitavelmente quando abrimos a página no poema “Os novos jogadores de xadrez”. Há também uns aromas de Sophia no poema “Minotauro”.
Quanto à educação escolar e universitária é por de mais evidente. Não apenas nos títulos dos poemas, mas no seu conteúdo. As figuras mitológicas carregadas de diversos e ricos simbolismos: Sísifo, Hefesto, Eros, Minotauro, Apolo … e de inspiração explicitamente bíblica: David e Golias.

Em síntese, tudo pode terminar na cabeça onde a pedra devia morar. Quem diz cabeça, diz sótão. Quem diz pedra, diz livro. Este teme apenas o frio da ausência de leitura, de leitores. Por isso há que fugir do sótão onde mora o frio da solidão literária. Caso contrário pode acontecer o que diz a poetisa brasileira Adélia Prado: “Deus de vez em quando me tira a poesia e eu olho pedras e vejo pedras mesmo...”







“Tenho uma pedra”

O homem ser esquisito
pensa e escreve
Como quem respira o ar quente da noite
Onde as gotas de pedra fazem eco na solidão dos pensamentos.

No sótão, lugar frio onde os livros
são pedras que se expandem
 e fogem ao tiro natural da Biologia
provoca-se o sangramento das palavras
e restam as impressões da tarde.

Mas da conjugação dos astros – leia-se influências -
quando o homem chora
antes que seja tarde
surge o escultor, estatuário de pedras feitas ideias.

O poeta, escultor de frases manufacturadas,
grita que é proibido não proibir
e que é preciso matar a opressão das palavras.

Os novos jogadores de xadrez substituem palavras por pedras
e, qual Sísifo, enfrentam o destino
na luta desigual de David e Golias.

Presos no labirinto, dominam o Minotauro
embora o Narciso interior os faça caminhar
para o domínio de um Eros construtor de imagens
e de sensações persistentes como um formigueiro
em que as ideias são emanadas pelo pó das pedras.

Ou, então – é o poeta quem o diz - nada disto!





Na biblioteca, em cada livro,

em cada página sobre si
recolhida, às horas mortas em que
a casa se recolheu também
virada para o lado de dentro,

as palavras dormem talvez,
sílaba a sílaba,
o sono cego que dormiram as coisas
antes da chegada dos deuses.

Aí, onde não alcançam nem o poeta
nem a leitura,
o poema está só.
‘E, incapaz de suportar sozinho a vida, canta.’



Manuel António Pina, Poesia, saudade da prosa.

(Todas as fotos são da autoria do Arménio Bernardo)

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