sábado, janeiro 21, 2012

Li: A Divina Pestilência, de João Rasteiro

A seguinte recensão está publicada na revista cultural Praça Velha, n.º30.


Silêncio silabado: A Divina Pestilência, de João Rasteiro


5. Um súbito silêncio entre as
sílabas de certas palavras
que fica depois a pairar perto dos lábios.

(Manuel António Pina)



Se atentarmos na real necessidade de efectuar uma recensão crítica a uma obra que foi objecto de avaliação e de ponderação por um júri especializado na análise poética, facilmente chegamos à conclusão de que pode ser uma perda de tempo a atenta leitura e a posterior reflexão sobre essa obra vencedora de um qualquer prémio literário. No entanto, teremos de aqui concordar com sábias ideias avançadas por Edgar Allan Poe, um dos incontornáveis e polémicos nomes da literatura mundial, no seu artigo “Carta a B –“. Diz-nos ele (por outras palavras), no meio de uma reflexão acerca da crítica literária (naquele caso a um poema), que um idiota é capaz de dizer que Shakespeare foi um grande autor sem nunca ter lido uma só linha dos seus textos. Daí que nem sempre as críticas são justas ou suficientemente aprofundadas. Tem Poe toda a razão, não só acerca daquela que foi a massa crítica no seu tempo como ainda mais razão conseguiria se se referisse aos tempos que correm. Vejamos, a partir da opinião de ilustres colunistas, a quantidade de autores que nem precisam de ser lidos para serem certezas do próximo cânone literário. Pois, também nós poderíamos aceitar dogmaticamente a decisão de um júri e lançar “laudas” a qualquer obra que seja vencedora. Mas, não estaríamos nós a pactuar com o eternizar do facilitismo e do conforto da opinião única, e, na base, a abdicar da nossa própria inteligência? Eis a impossibilidade que nos atinge e que nos leva a optar por uma posição questionadora e, por vezes, conflituosa, mas extremamente positiva e evolutiva ao nível da construção de um intelecto saudável.
Serve a anterior reflexão de preparação para a análise crítica à obra A Divina Pestilência, de João Rasteiro, vencedora da 1.ª edição do Prémio Manuel António Pina (2010), oportunamente criado pela Câmara Municipal da Guarda em colaboração com a editora Assírio & Alvim. Sobre o autor, poderemos dizer que não será um desconhecido para quem segue de perto o fenómeno poético, uma vez que tem uma presença constante na revista Oficina de Poesia e tem já publicados outros livros: A respiração das vértebras (Editora Palimage), em 2001; No centro do arco (Editora Palimage), em 2003; Os cílios maternos (Editora Palimage), em 2005; O búzio de Istambul (Editora Palimage), em 2008; Pedro e Inês ou as madrugadas esculpidas (Editora Apenas), em 2009; Diacrítico (Editora Labirinto), em 2010; e Tríptico da súplica (Editora Escrituras), em 2011 no Brasil. Para além destas referências, João Rasteiro tem colaborado intensamente com o Brasil, resultando daí algumas das influências que se encontram em A Divina Pestilência e que a transformam num objecto poético invulgar ao mesmo tempo que é um exercício estético de excelência. Sim, tal como Edgar Allan Poe diz no artigo acima referido: “(…) podemos supor que os livros, como os seus autores, melhoram com as viagens”, mesmo que essas viagens sejam unicamente fruto da leitura e da partilha de sensações poéticas, acrescentamos nós. E destas viagens que o autor faz por diferentes culturas e diferentes estéticas (que tentaremos expor mais à frente) nasce uma obra que poderíamos apelidar de multifacetada, tantas são as referências e as hipóteses de leitura que suporta e que nos vai obrigando a relembrar ou a solicitar. Talvez seja esta a grande virtude da quase totalidade da obra: a capacidade de perturbar o leitor e de o levar a “tentar” várias leituras de cada um dos poemas que a compõem.
Tentemos, agora, vislumbrar o interior da obra e perceber as relações de sentido que são desde logo despoletadas, não nos esquecendo da importância que a viagem encerra ao longo das páginas d’ A Divina Pestilência. Pensamos que qualquer leitor terá curiosidade em perceber o porquê do título, que encerra em si duas palavras que são antagónicas (note-se a existência do oximoro): “divina” encerra em si um sentido que aponta para o sublime, a perfeição, para algo que se relaciona com os próprios deuses; enquanto “pestilência” aponta para a doença, para a peste, para as epidemias que dizimam milhões e para a própria morte. Temos, portanto, um título que é paradoxal e que apanha o leitor exactamente pelo intelecto, levando-o a raciocinar e a procurar outros caminhos para o entendimento. Nessa procura por outras explicações, porque não já no interior do livro, o leitor é confrontado com as sete epígrafes (que acompanham o título de cada parte da obra) retiradas da obra maior de Dante: A Divina Comédia. Como sabemos, este título revela desde logo aos seus leitores que a obra do poeta florentino (que é autor e personagem de uma imensa viagem que atravessa o Inferno e o Purgatório, e termina no Paraíso), quanto ao conteúdo, termina de forma feliz. No caso da obra em análise, e seguindo um raciocínio idêntico, poderemos ser levados a interpretar o paradoxo do título com a possibilidade de a obra conter um sentido negativo e que aponte para um final infeliz ou não satisfatório, uma não realização da palavra ou um verbo sem sentido. Continuemos. Após esta reflexão inicial, o autor apresenta a epígrafe prefacial da obra que é constituída por dois haikai do imenso poeta japonês Matsuo Bashô (1644-1694). Estes haikai, que apelam à concisão e à precisão doutrinárias, apontam um sentido de escuridão no poema, demonstrando que o que poderá sobrevir no resto da obra é a constatação de uma esperança que poderá não existir. Já no haikai de Bashô que fecha o livro, apela-se ao silêncio que deixe a natureza fluir e realizar-se plenamente, sendo esta leitura compatível com as necessárias condições que devem ser reunidas para a existência de uma fruição poética completa. Convém referir que este tipo de poema, que ao nível da versificação aponta para uma espécie de terceto irregular, não tem quase expressão em Portugal (Albano Martins, David Rodrigues, ?), mas no Brasil é cultivado desde o início do século XX (1919), por influência do poeta simbolista Afrânio Peixoto. Como referimos acima, a ligação de João Rasteiro com um conjunto de autores brasileiros contemporâneos e o seu gosto pessoal pela poesia daquele país poderá ter despoletado neste a forma escolhida para nos apresentar o seu livro A Divina Pestilência, pois também (conforme veremos mais adiante) a estrofe escolhida pelo autor é o terceto que se aproxima do haikai (não puro) pelo conteúdo, mas que se fica por uma espécie de terceto chave-de-ouro (roubando essa designação à derradeira estrofe do soneto) que encerra a moral ou que pretende resumir o restante texto. No entanto, poderemos ainda acreditar que o autor pretendeu com a utilização do terceto seguir a estrofe utilizada na obra de Dante. Todas hipóteses atrás citadas são plausíveis e pretendem a subjectividade que preenche a escrita do poema, cabendo-nos a nós, que o lemos, escolher a tentativa de interpretação que mais nos agradar. Neste caso, e tentando concluir a ideia iniciada com a reflexão sobre o haikai, convém ter em atenção que João Rasteiro consegue reunir com um agradável equilíbrio culturas distantes física e culturalmente: a ocidental, através de Dante, e a oriental, através de Bashô, ficando a dúvida sobre qual é a cultura que pretende salientar ao invés da outra. Na nossa opinião, nenhuma delas é submetida à outra, antes funcionando estética e representativamente ambas de forma eficaz.
A obra, em termos organizativos, é composta por sete partes, que possuem os nomes das sete colinas que rodeiam Roma: Aventino, Campidoglio, Celio, Esquilino, Palatino, Quirinal e Viminal. A escolha destes títulos para encabeçarem as sete partes da obra não parece relacionar-se com Dante. De outra perspectiva, podemos pensar, por um lado, que é esta uma espécie de celebração da multiculturalidade da cidade que foi Império, tentando o autor apresentar a sua obra como o resultado de várias vivências culturais, ou, por outro lado, que a alusão às sete colinas poderá funcionar como uma alusão aos sete pecados capitais, que como sabemos, são uma das imagens que desde sempre está ligada à la grande meretrice (a cidade de Roma sem moral ou pudor). A realidade é que as colinas são dispostas alfabeticamente, não dando a entender que existe uma qualquer orientação geográfica ou uma qualquer opção estilística, mas uma opção meramente organizativa. Já a referência contínua ao sete (vejamos que as sete partes da obra possuem, cada uma individualmente, sete tercetos) aponta, tanto na tradição bíblica como nas tradições muçulmana e oriental, para a perfeição, sendo destacado na organização dos livros sagrados e da própria cosmologia do universo que cada religião apresenta. A existência do sete pode ainda supor, em associação com a tonalidade negra da obra, o apontar para o Apocalipse, que é também constituído por séries de sete e que aponta para “a plenitude de um período de tempo concluído”, segundo as palavras de Chevalier e Gheerbrant no seu Dicionário dos Símbolos. Tendo esta última referência como objecto de questionação, poderemos constatar que existe uma tentativa de aproximação do teor de um livro a outro?
Centremo-nos no interior das sete partes, mais concretamente nos tercetos. "Tudo é divino e trágico,/ saboreia-se o fel do verbo/ o leito do delírio, a sílaba". No terceto que inicia a obra, verificamos que o objecto de análise é a semiótica e o objecto analisado a palavra. É a partir da palavra que se constrói a antítese. É na existência da palavra que se conseguem os sentidos do poema. É com a palavra que a existência ganha tonalidades. E assim, terceto após terceto (uns de sensibilidade mais oriental – relacionando-se com a observação natural e com um sensacionismo de coloração caeiriana - e outros com uma existência mais ocidental e mais enraizada na discussão estética), o autor dá-nos uma reflexão não só poética mas também filosófica da existência e da efemeridade da palavra, através da dúvida ou da constatação da ausência de caminhos. "O poema serve de mortalha,/ ignoro de que ocultos metais/ é constituída a arte dos dedos". Tendo este terceto como elemento de significação, citemos Roman Jakobson, no seu artigo “O que fazem os poetas com as palavras”, na tentativa de abrir espaços de interpretação que possam aparentemente revelar-se intransponíveis: “Há poetas, escolas, que se orientam para as rimas gramaticais, e poetas, escolas, que visam antes as rimas agramaticais, ou, mais exactamente, antigramaticais.” Não estamos, com a frase de Jakobson, a considerar errada a gramática do terceto ou a gramática do entendimento do poema. Estamos, sim, a recordar o leitor, ainda a partir de Jakobson, de que “tudo na linguagem é, nos seus diversos níveis, significante.” Temos, pois, de procurar as ferramentas que consigam ajudar-nos a compreender toda a amplitude que um texto poético encerra na sua forma, aparentemente, mais simples.
A obra vencedora da 1.ª edição do Prémio Manuel António Pina é de difícil caracterização ou inserção numa qualquer corrente literária que nos tenha precedido ou que exista actualmente. Poderemos ser tentados a chamar-lhe literatura contemporânea pela coexistência consciente de diferentes formas estéticas e de diferentes culturas. No entanto, se houvesse necessidade de a inserir numa corrente a criar ou que exista naturalmente sem necessidade de “encaixotamento”, diriamos que é uma obra que facilmente se inseriria num neossimbolismo de teor oriental, pois vive dos vários símbolos que são projectados em cada um dos tercetos e pretende uma relação do eu - leitor com o poema que propicie o equilíbrio.
Em conclusão, é uma obra que merece ser lida e relida, para que os múltiplos sentidos possam aproximar-se do entendimento. O júri deste prémio viu a potencialidade multissignificativa desta obra e a complexa teia em que ela foi urdida, dando ao poeta João Rasteiro um prémio merecido pelo intenso labor que lhe dedicou e que decidiu partilhar connosco. Não é o livro de poesia ideal, nem sei se existirá “o” livro ideal, mas é um livro obrigatório para apreciadores de poesia que gostem de ser desafiados e que esperem que a sílaba não seja apenas um elemento de uma palavra e, sim, um elemento de significação no meio do silêncio da leitura. Para além disso e como expectativa acerca do resultado final desta análise, diz Poe e nós concordamos, “um poeta, que seja de facto poeta, creio que não poderia deixar de fazer uma crítica justa.”

Famalicão da Serra, 30 de Setembro de 2011
Daniel António Neto Rocha

(In: Revista Praça Velha n.º 30. – Guarda: NAC/ CMG, Dezembro de 2011. – p. 293 a 298.)

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