A vida é feita de nadas:
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas… pelo vento;
De casas de moradia
Caídas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;
De poeira;
De sombra de uma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu Pai a erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha.
Comecei por ler um poema de Miguel Torga que, espero, possa
ser a porta de entrada para o entendimento de todas as outras palavras que se
seguem.
Coube-me,
hoje, a responsabilidade de, nesta tarde de tempos inquietos, lembrar e
partilhar convosco um pouco da vida e gestos de duas pedras basilares do
Instituto de Gouveia que este ano partiram, como todos sabemos, em
circunstâncias difíceis de entender. Difíceis de entender porque a vida nos tem
habituado a que a longevidade seja uma realidade e também porque nada nem
ninguém nos prepara para a partida de amigos que nos fazem bem. E estes que nos
partiram, meus caros, eram pessoas de bem e que nos faziam bem. E digo
“partiram” no sentido múltiplo da palavra, que implica afastamento mas também
desagregação ou destruição. De uma forma mais simples, todos sentimos, desde a
dupla partida, a dor e uma sensação de desajuste que o tempo, dizem, tratará de
aligeirar.
Tinham,
estes que lembramos, defeitos? Certamente teriam. Tinham momentos menos bons? De
certeza que sim. Mas tinham, acima de tudo, uma presença que a todos agradava e
que a todos completava. Falo, obviamente, e digo-o como eu os chamava, do
Engenheiro Maia e do Pires. Desculpem-me esta fuga para um discurso mais
informal, eventualmente menos laudatório, mas os dois homens que eu conheci
tinham os pés na terra e era dela que se erguiam, tal como a “videira” de que
falava Torga.
Espíritos
inquietos, digo eu, que se mostravam através do gosto pelas artes e pela
cultura, como sempre, e bem!, fizeram questão de vincar, seja através da
ligação às direções de várias associações culturais do concelho, seja através
da dedicação pessoal e cuidadosa à prática e cultivo dessa mesma veia criativa.
No caso do Pires através do gesto fino e certeiro com que nasciam desenhos,
pinturas ou uma ou outra personagem em momentos teatrais. No caso do Engenheiro
Maia através do gesto amplo e paternal com que desafiava, acolhia, regava e
encorajava as ideias que, muitas vezes, tantos de nós lhe propúnhamos.
Poderíamos pensar que (e nos dias de hoje seria o mais óbvio!) o gesto fino e o
gesto amplo entrariam em conflito. E talvez, por vezes, as ideias não fossem
completamente comuns. Mas os homens que conheci e que comigo, e com todos nós,
partilharam momentos, tinham o dom da palavra. E digo palavra porque o ponto de
encontro entre todos é, e deve continuar a ser, o da partilha da palavra. O
diálogo que é como a imagem “da mãe a fazer a trança à filha”: admirável e
digno de atenção.
Felizmente
todos tivemos a oportunidade de partilhar a palavra com eles. Seja no gabinete
da Direção, onde ao final do dia, tantas vezes, se constituía uma “mesa
redonda” de troca de opiniões, de preocupações, mas também de desejos e de
ambições. Tudo sempre regado com uma boa dose de humor, e de fina ironia, que
espicaçava os sorrisos e nos dava a exacta dimensão dos dias.
Caros
amigos, do Pires conhecemos o caminhar, desde tenra idade, desde África até
Gouveia e por aqui marcar um espaço ímpar. Do Engenheiro Maia conhecemos a sua
ligação à terra, desde criança, nas difíceis caminhadas pelos montes, mas
também na busca incessante por melhor servir, por saber mais sobre esta mesma
terra e por descobrir novos caminhos para ela.
Os
dois souberam, tal como o pai que ergue a videira, abraçar a missão de erguer
mais e mais o Instituto de Gouveia a cada dia que lhe dedicaram.
Hoje
agradecemos nós aos dois pelos sorrisos que partilhámos juntos!
Gouveia, 19 de Setembro de 2020