sexta-feira, setembro 02, 2011

Li: Olhos de Cão Azul, de Gabriel García Márquez



Resignamo-nos? Não! Lêmos a terceira.


Em pleno século XX, durante um período de convulsões sociais e políticas (onde se constroem ditaduras ao mesmo tempo que se calcorreiam caminhos de libertação utópica), que percorrem o mundo, amadurece um talento de extensão mundial que se revelará em 1947.
Gabriel García Márquez não é um escritor de biografia agradável ao leitor que procura um ser puro, limpo de má vida ou um Deus feito homem. Quem percorrer a sua autobiografia (Viver para Contá-la) depressa se apercebe que a transgressão e a marginalidade à vida são pratos fortes deste autor. Fará esta vida boémia e por vezes degradante que o autor se apague? Não, não , não e, outra vez, não! Tal como o calor da América Latina sugere aos corpos uma roupa leve a roçar a nudez, também este escritor sugere aos seus leitores o despojamento de alguns utensílios morais e de preconceitos que tornam, por vezes, a leitura de uma obra literária num jogo do esconde e encontra. Ou seja, ler é um exercício que por vezes é doloroso e exige a dádiva (obrigatória!) de sangue, suor e lágrimas, e doutras vezes transforma-se num exercício de sugestão erótica e sensual. Podemos apaixonar-nos por uma personagem de um conto, novela, romance ou de um qualquer texto literário? Podemos e devemos. García Márquez dá-nos essa possibilidade em toda a sua obra.
"A terceira resignação" (1947) é um conto da juventude. Depois de ter abandonado o seu projecto inicial e mítico (já!), "A revoada", sente que é tempo de começar por baixo. Melhor dizendo, é tempo de percorrer um trajecto de construção desde a base, é tempo de assumir as suas falhas e educar-se na escrita. Daqui nasce a ligação ao jornalismo e ao primeiro espaço de publicação da sua obra e, digamo-lo, à vida desregrada com classe. Com a publicação deste conto, García Márquez, cria uma corrente de escrita apelidada de realismo mágico. Creio que com a leitura deste conto nos apercebemos claramente do estilo. Onde já se viu um morto ganhar o papel de personagem principal? Onde já se viu a existência viva de um morto? Onde já se encontrou uma mãe que todos os dias (durante 18 anos!) mede o seu filho de forma a constatar que se encontra vivo apesar de morto?
Fabulosa leitura e uma viagem incrível até um universo que vive sobretudo dos conceitos de estranheza e de amor materno.
Boas leituras e boas descobertas!

2 comentários:

André disse...

Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis

Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Jorge Amado

Só para citar dois exemplos de existências vivas de mortos.

E do Gabriel, Crónica de uma Morte Anunciada. Não vou revelar pormenores, para não te estragar o prazer da leitura. Ou se calhar vou: O personagem principal está morto desde a primeira palavra, mas o Gabito convence-nos (aos leitores) a esperar que a personagem principal escape - quando sabemos desde a primeira palavra que está morta...

Abraço.

Daniel Rocha disse...

Obrigado pelo teu comentário, André. Sim, são três exemplos fantásticos deste tipo de intervenção junto às personagens. Já conheço a "Crónica de uma Morte Anunciada". Aliás, é um dos meus romances preferidos e (se não estou em erro!) foi o único que criou em mim um enorme sentimento agónico enquanto o lia. Simplesmente fantástico. Mais uma vez, obrigado! Grande abraço aí para a aventura saxónica (se não estou a dizer uma grande asneira)!