terça-feira, maio 10, 2011

14. Crónica Diária na Rádio Altitude (2.ª temporada) – Crónica de Chora-Que-Logo-Bebes ou da virgem socrática entristecida

1. Em 1933, enquanto escrevia periodicamente pequenas histórias para a gazeta juvenil O Sr. Doutor com o pseudónimo de Avó do Cachimbo, José Gomes Ferreira estava muito longe de saber que a sua alegoria sobre o Portugal dos anos 30, intitulada As Aventuras de João Sem Medo, ganharia uma dimensão tremendamente actual oitenta e tal anos depois, e que daria azo a uma crónica radiofónica na cidade da Guarda. Para quem não conhece esta pequena pérola literária de aparência juvenil, que nada fica a dever ao mundialmente famoso Animal Farm, de George Orwell, fiquem a saber que é um conjunto de aventuras que têm como denominador comum a personagem heróica de João Sem Medo – um jovem contestatário da aldeia de Chora-que-logo-bebes, que está farto de viver no meio de lamúrias e de lágrimas. A partir do momento em que a humidade e o verdete se tornam insuportáveis, João parte da sua aldeia, apesar de todos os receios que a sua chorosa mãe lhe apresenta. Quase profeticamente, se atentarmos naquilo que aconteceu fisicamente na Alemanha e psicologicamente acontece por este mundo fora, o nosso herói depara-se com um muro altíssimo (metáfora da ignorância que acompanha os homens) que tem como função impedir o contacto com outro mundo – a chamada Floresta Branca, espaço dos sonhos, dos mitos e do desconhecido. Ora, para chegar a esse espaço de eleição, João Sem Medo tem de atravessar o Muro, que contém a seguinte inscrição: “É proibida a entrada a quem não andar espantado de existir”, dito que parece indiciar a seguinte leitura: só quem tem consciência de si poderá aventurar-se num novo mundo. A história teve um sucesso notável naquela época, tendo sido recuperada em forma de romance em 1963, quando a luta contra o regime de Salazar se revelava mais intensa. Nesta edição, o autor ainda não desconfiava, mas apresentava já a imagem de homem desafiador das regras impostas e um exemplo de coragem perante a adversidade tão necessário nos dias de hoje.

(...)


Guarda, 09 de Maio de 2011
Daniel António Neto Rocha

(Crónica Radiofónica - Rádio Altitude, no dia 10 de Maio de 2011 - disponível em podcast em Altitude.fm)

2 comentários:

JMGM disse...

Como sempre bem dito e escrito!
Mas sabes que esta geração nova (não importa os epítetos que se lhe ponham!) não acha piada à alegoria das "Aventuras"?! O que terão na cabeça? Nada e a culpa também é nossa!!!!Continua a mimosear-nos com essas pérolas.
Abraço
JM

Daniel Rocha disse...

Caro Zé, obrigado pela tua leitura e pela tua força positiva! Realmente, hoje não se lê quase nada de jeito e aquilo que tem algum jeito é lido, muitas vezes, mal. Estamos presos no lodaçal do tempo e começo a pensar que daí não sairemos. Sim, sinto-me culpado por não conseguir meter nada na cabeça de alguns desta geração (mas também de outras mais velhas!), mas, perdoem-me os agnósticos ou os ateus, Deus sabe que bem tento!
Obrigado pelas tuas palavras, nem sabes o bem que fazem num dia como este de "revoltosa calmaria".
Logo passo no teu local de trabalho para bebermos um café e trocarmos dois dedos de conversa.
Abraço,
Daniel Rocha