É já um texto antigo, ou melhor, um texto com cerca de um ano, mas com o fim do blogue "Café Mondego" ficou escondido nas páginas da revista cultural Praça Velha, n.º 31. Com a aproximação do lançamento do novo livro do Américo Rodrigues, decidi resgatar esta minha recensão para o formato digital. Esta que lêem é a versão alargada da recensão que podem ler na já citada edição da revista guardense.
A “palavra essencial” esquecida: acidente poético fatal, de Américo
Rodrigues
Afinal o que importa é não ter medo: fechar os
olhos
frente ao precipício
e cair verticalmente no vício
(Mário
Cesariny)
Do autor, Américo Rodrigues (n. 1961),
não haverá pouco a dizer. É um nome incontornável da história cultural recente (dos
anos 80 à actualidade) da cidade da Guarda e será uma referência nacional da literatura
e das artes em geral. Podemos chamar-lhe poeta, actor, dramaturgo, encenador,
cronista ou, na nossa opinião, performer.
Todos estes nomes lhe estão ligados umbilicalmente e todos lhe assentam na
perfeição, basta observar com atenção a sua longa produção artística. O seu
trajecto enquanto poeta é já longo e a sua lista de publicações é extensa - Na nuca
(1982), Lá fora: o segredo (1986), A estreia de outro gesto (1989), Património de afectos (1995), Vir ao nascedoiro e outras histórias
(1996), Instante exacto (1997), Despertar do funâmbulo (2000), O mundo dos outros (2000), Até o anjo é da Guarda (2000), Panfleto contra a Guarda (2002), Uma pedra na mão (2002), Obra completa – revista e aumentada
(2002), O mal – a incrível estória do
homem-macaco-português (2003), A
tremenda importância do kazoo na evolução da consciência humana (2003), Escatologia (2003), Os nomes da terra (2003), A
fábrica de sais de rádio do Barracão (2005), Aorta Tocante (2005), O céu
da boca (2008), Escrevo-Risco
(2009) e Cicatriz:ando (2009) -,
compreendendo obras que vão do “vulgar” livro até aos objectos poéticos nas
suas mais diversas realizações.
Das influências do autor saberemos um
pouco mais conforme o conhecimento que tivermos das suas próprias produções. Se
atentarmos neste seu percurso artístico e poético, verificamos que recebe
várias influências teatrais e performativas, nomeadamente no que diz respeito
ao trabalho experimental com a voz ao nível do teatro (é importante destacar o
estágio que efectuou com Catherine Dasté, em Paris, no ano de 1979). Este
trabalho com a voz é completamente inovador no Portugal dos anos 80 e dá-lhe,
desde aí até hoje, o estatuto de único poeta sonoro português e um dos
principais elementos do movimento poético experimental dos últimos trinta anos.
Mas interessa pressentir não só as influências experimentais. Também ao nível das
influências poéticas mais formais, a sua capacidade de absorção rege-se pelo
caminho mais marginal (em jeito de confissão, diz o autor que a “culpa” foi de
um bibliotecário que trabalhava na antiga biblioteca itinerante – a mítica
carrinha vermelha da Gulbenkian – que lhe aconselhava sempre a leitura de
poetas como Herberto Helder, Mário Cesariny, Ramos Rosa, entre outros). A sua
poesia não segue a lógica dos poetas presencistas ou neo-realistas, apesar de,
em alguns momentos deste livro que analisamos, se pressentirem algumas dessas
temáticas relacionadas com a denúncia do autoritarismo e da injustiça social
(no que ao neo-realismo diz respeito), e duma presença constante do traço
original (tão querido aos presencistas). É, sim, uma poesia de influência surrealista,
mergulhada na ideia que é lançada por Mário Cesariny no artigo “Mensagem e
ilusão do acontecimento surrealista”, inscrito no n.º 1 da Revista Pirâmide: “Também porque o surrealismo se inscreve numa zona de conhecimento que
mesmo nos pontos globais do seu percurso (…) será sempre parcela e nunca soma, pois das muitas coisas com que tem a
ver tem a ver sobretudo com o amor do futuro, é prova de inquirição que cabe a
cada homem para continuação de novo homem que vem.” Mas nem só de
surrealismo se reveste, pois o espírito do movimento Dada (consubstanciado no
espírito reaccionário perante injustiças sociais protagonizadas pela sociedade
burguesa e pelo seu sistema racional) está presente como o “ruído” incómodo que
a sua poesia cria à sociedade que se rege pela criação de um status quo que quer permanecer
intocável. Estas, últimas, serão as duas principais influências de Américo
Rodrigues ao nível da poesia.
Algumas questões já começaram a ser
afloradas nas linhas anteriores, sendo que este acidente poético fatal retoma algumas das influências já referidas,
mas (e lá vem o cunho de originalidade que “herdou”, talvez, de Almada
Negreiros) não é só isso. Em acidente
poético fatal, Américo Rodrigues apresenta aquilo a que poderemos chamar poesia
performativa, sabendo nós de antemão que é um termo vago e, possivelmente,
impreciso ao nível da tão necessária objectividade da crítica de teor académico.
Voltaremos a ele no final. O título é sugestivo e aposta desde logo num recurso
de enriquecimento textual – a adjectivação – que cria na expressão uma curiosa
relação de dependência entre o adjectivo “poético” e o nome “acidente” que pode
desde logo ser lido pelo absurdo criativo que proporciona. Como sabemos, no
campo da poesia não existem acidentes fatais. Pode haver imprecisões, más
escolhas, maus poemas, maus autores ou más críticas, mas nunca se revelam
fatais (no sentido ontogénico do termo). Logo, a escolha deste título aposta na
conjugação da estranheza e da sua utilidade para a criação de universos
simbólicos e esteticamente ricos, e revela-se tremendamente certeira. Já ao
nível das relações gramaticais entre os vários constituintes do título, a
escolha foi ainda mais acertada. Se tentarmos encontrar uma tabela que analise
a importância das três palavras na expressão que se constitui como título,
poderíamos considerar que o centro do grupo nominal de que a expressão se
reveste é, de facto, um adjectivo. Isto, como sabemos, é um erro ao nível da
análise gramatical. Pensamos que Américo Rodrigues teve consciência disso no
poema que empresta o título ao livro (pág. 48):
Declaração
Para os devidos
efeitos
(e feitos)
declaro que em caso
de acidente poético fatal
deixo
dou
doo
(…)
Como
se percebe, através da leitura atenta de todo o poema, o poeta dá-nos a
impressão de estar a comunicar os seus últimos desejos testamentários, mas
consciente de que o faz apenas com elementos não usuais no tipo de texto que
normalmente serve de testamento. Ao nível da aproximação estética deste tipo de
estratégia poética a outros poetas portugueses, sabemos que a poesia de
Herberto Helder – curiosamente um dos agraciados com os bens testamentários –
também opta por este jogo de intersecção de planos diferenciados, ou, na
expressão de Maria Lúcia Dal Farra, pela opção dos “campos semânticos
cruzados”. Convém referir-se que esta estratégia, colada a Herberto Helder, é
utilizada desde o primeiro modernismo português (por exemplo, “Chuva oblíqua”
de Fernando Pessoa) e por todos os poetas e demais artistas que usaram o
surrealismo como ponto de origem da sua criação artística. Depois desta
primeira incursão pelo texto, e usando-a ainda, pensamos que é importante
referir e estar atento à forma como o poeta trata o tema da morte. Neste poema (“Declaração”)
encontramos um testamento, que alude à organização do homem perante a
inevitabilidade da morte. Noutros poemas a morte surge associada ao suicídio (“Os
rapazes”, pág. 6), ao anúncio da morte ou da celebração dos mortos (“Os mortos”,
pág. 10), aos epitáfios que hão-de encimar as pedras tumulares (“Epitáfios”,
pág.s 13 e 14), e outros (principalmente em “Poeta Local” (pág. 17), “Sete
telefonemas” (pág. 40) e “Casas” (pág. 57). Não pensemos no entanto que aqui a
morte é vista de forma literal, esperando a existência de uma encenação
romântica. A morte é antes um motivo de sarcasmo, de crítica ou de sátira,
perante as motivações de escrita do poema. O grande tema deste acidente poético fatal, porém, é outro:
o humor, por vezes negro, que passa pelo conjunto de poemas e que, de forma
satírica ou sarcástica, aponta para a forma crítica como Américo Rodrigues olha
o mundo que o rodeia. Como exemplo de crítica social e, também, moral, leia-se
(pág. 23)
Projecto
Dão-me papas
Duas vezes por dia
Dão-me remédios
Todos os dias
(…)
Leiam-se
ainda “Vêm” (pág. 12), “Ninho” (pág. 8), “A entrega” (pág. 18) e “Não Há” (pág.
54), entre outros. Podemos verificar que existe neste ponto a aproximação ao
Cesariny da Nobilíssima Visão, onde o
humor seco e crítico se expande de uma forma quase invisível (leia-se o poema
“Pastelaria”). Numa característica que tem como compromisso o humor crítico,
verificamos outra das estratégias que foi também cara aos surrealistas e que
Américo Rodrigues utiliza de forma bastante acutilante: os animais (seres irracionais)
como representação de uma realidade criticável e negativa (pág. 5):
O pequeno boi
O pequeno boi
cinzento
claro
ruminando.
(…)
A
este nível, verificamos que existe uma correspondência de utilizações de
figuras animalescas como forma de intensificar sentidos, regra geral
pejorativos, com outro dos grandes autores portugueses que tiveram uma passagem
pelo surrealismo: Alexandre O’Neill. Como exemplos da obra de O’Neill, leiam-se
“Galo de Barcelos” e “Made in Portugal”. Na obra em análise, verifiquem-se
também “Poemas da transumância” (pág. 42) e “Visita guiada” (pág. 27), onde a
utilização dos animais como forma de crítica é efectuada de forma singular.
Poderíamos, ainda, aqui salientar um conjunto de estratégias
que demonstram bem a grande riqueza e o enorme valor literário deste pequeno acidente poético fatal. No entanto,
deixaremos apenas, visto que importa aguçar o apetite dos potenciais leitores e
não impor uma leitura, algumas pistas de leitura que poderão ajudar à
construção de horizontes significativos individuais. Atente-se então nas várias
imagens visuais criadas com mestria, observem-se algumas construções e
desconstruções de palavras que soam a música, oiçam-se alguns aspectos fónicos
que lembram os trava-línguas, visualize-se a exploração da poesia experimental
e compreenda-se a utilização do calão como catarse da emoção violenta (quase um
grito dadaísta).
Existem ainda duas pequenas referências que fazem com que a
este livro de Américo Rodrigues possa ser visto como uma obra universal: a
primeira demonstra-nos essa validade universal da obra e a segunda dá a
explicação do termo poesia performativa. Em primeiro lugar, Carl-Gustav
Bjurström, tradutor de Lars Gustafsson para a língua francesa, no prefácio à
obra A morte de um apicultor, destaca
uma estratégia discursiva deste escritor sueco a que dá o nome de “trompe
l’oeil”. Este termo, numa tradução muito livre e muito pouco literal, significa
“engano consciente” e consiste na apresentação de elementos que são demasiado
estranhos e acutilantes para não serem falsos. Pois bem, Américo Rodrigues
utiliza, neste livro, esta estratégia de uma forma extremamente bem conseguida
(pág. 16):
Abadia
Na abadia franciscana de Monteveglio
Há um sistema inovador
(…)
Aqui, o “trompe l’oeil”
surge nos versos “eu próprio pedi que
Frei Giovanni della Annunziata/ ali me confessasse.” Estaria o poeta a
tentar redimir-se da imagem ridícula que cola às vetustas catedrais católicas
do poema “Ninho”, que parece estar colocado, de forma estratégica, três páginas
atrás? A estranheza apodera-se de nós no verso referido, mas é resolvido logo
nos versos que o procedem. Depois esclarece por completo a estranheza no poema “Atendimento
automático” que não é mais do que uma brilhante resolução da questão com que o
ser humano religioso se interroga sempre que é atingido por uma desgraça: mas
onde é que estava deus? Desta forma, este “trompe
l’oeil” vem adensar ainda mais a imagem iconoclasta deste sujeito poético,
pois são utilizadas as instituições de toda a ordem como elementos humorísticos
através da ironia e do sarcasmo. Em segundo lugar, e para elucidar a dúvida que
nos acompanha desde o início, pensamos que este livro que Américo Rodrigues nos
apresenta é um excelente exemplo da poesia performativa porque se situa no
centro da viagem entre a poesia sonora e a poesia lírica (iniciada a chegada a
esta poesia mais “literal” a partir da experiência poética que é a obra Cicatriz:ando), contendo em doses bem medidas o
melhor das duas: a forma rítmica e musicada de uma, e o conteúdo simbólico da
outra.
Por fim,
convém salientar um “pequeno pormenor” que tem grande importância para o
conjunto da obra de Américo Rodrigues. Esperava-se que o final do livro fosse
muito corrosivo e de um humor tremendamente sarcástico, visto que por todo o
livro é esse o ingrediente principal. No entanto, e de forma surpreendente, o
poeta oferece-nos uma ponte de escape simbólica para uma poesia de temática
mais intimista. Assim, guarda os poemas “Insónia” (pág. 58) e “Não me acordes”
(pág. 59) para fazer uma transferência de planos entre este acidente poético fatal e a obra
seguinte, que terá como pontos de partida o “sítio húmido/ da noite” e os “interstícios
da pele”, ou seja, a “palavra
essencial” recuperada.
Guarda, 05 de Maio de 2012
Daniel António Neto Rocha
(Versão mais curta In: Revista Praça Velha n.º 31. – Guarda: NAC/ CMG, Junho de 2012. – p. 201 a 205.)