Os espaços vazios: O Menino Rei, de Carlos Carvalheira
Os
homens precisam de monstros para se tornarem humanos.
(José
Gil)
Há quem diga que o espaço do “já
contado” é território proibido e que qualquer acrescento ou substituição de
tópicos será crime de “lesa majestade”. A ser assim o entendimento do leitor do
processo criativo que está implícito na escrita, fica o conselho: não leiam
este livro, livrinho ou opúsculo!
Assente nos textos bíblicos de Mateus, o mais atento dos
autores do Novo Testamento à questão do nascimento, sobrevivência e crescimento
de Jesus da Galileia, o autor, Carlos Carvalheira, concebe um pequeno conto que
vai preencher muitos dos espaços vazios que se se reconhecem nos textos dos
Evangelhos. Carvalheira desconstrói a visão ocidentalizada da ira de Herodes
(como se sabe, o governador sanguinário) e constrói-a segundo uma “visão nova”
onde o perseguidor do Menino se torna num dos centros da acção. E aí está a
riqueza desta narrativa “em dois andamentos”. Por um lado, o nascimento e a
fuga para o Egipto com a finalidade de proteger o recém-nascido. Pelo outro, a
notícia do nascimento e a perseguição movida por Herodes. A novidade, que
também apelidaremos como “Toque de Midas criativo”, está no tratamento que o
autor dá aos espaços não preenchidos nos textos bíblicos e que consistem na
categorização do medo sentido pelos fugitivos e pelo perseguidor. Se os
fugitivos temem pela vida do “Menino de olhos grandes e com caracóis nos
cabelos” e pelas suas próprias, o perseguidor, com traços de monstro
insaciável, teme pelo fim do seu espaço (consubstanciado, ironicamente, em toda
a opulência da posse de bens materiais e do direito a mandar) enquanto “todo-poderoso”.
O autor, segundo nos parece, estabelece aqui um curioso e bem conseguido
paralelismo com os tempos actuais, onde a perseguição ao mais fraco com a
finalidade de se manterem os lugares de destaque permanece uma evidência social
impossível de se menosprezar ou esconder. Neste ponto, uma interrogação parece
ganhar destaque e hipóteses de ressoar para além da leitura: até que ponto estamos
dispostos a chegar para conseguirmos manter o estatuto social? Não existe uma
resposta, ou não se pretenderá dar resposta a esta pergunta, funcionando o
conto como catalisador da reflexão para além das barreiras da própria história.
Como refere José Gil (no texto “Metafenomenologia
da monstruosidade: o devir-monstro”), e como nos parece que Carlos Carvalheira pretende com o seu
conto, “nós exigimos
mais dos monstros, pedimos-lhes, justamente, que nos inquietem, que nos provoquem
vertigens, que abalem permanentemente as nossas mais sólidas certezas; porque
necessitamos de certezas sobre a nossa identidade humana ameaçada de
indefinição. Os monstros, felizmente, existem não para nos mostrar o que não
somos, mas o que poderíamos ser. Entre estes dois pólos, entre uma possibilidade
negativa e um acaso possível, tentamos situar a nossa humanidade de homens.” Ou seja, o conto vem revelar que a sociedade de hoje
precisa de “monstros” que permitam a nossa localização enquanto homens,
entendendo-se estes homens como elementos harmonizadores de uma existência
comum. Herodes ganha, portanto, o direito de ser o centro da acção desde a
primeira até à última página, só perdendo esta centralidade nas últimas linhas
do conto quando (levantem-se em defesa da pureza do “verbo inicial”) o Menino
Rei lhe dirige algumas palavras plenas de ocasião e de ingenuidade. Os dois
planos narrativos interagem por fim e a distância que os afasta transforma-se
no inusitado e no criativo do momento, rendendo-se o “monstro” perante a fragilidade do Menino.
Um conto em forma infantil (notem-se as repetições, as
aliterações e a recorrência, na sua maioria, a um vocabulário simples e
claramente perceptível), mas com um subtexto forte e socialmente capaz de
provocar no leitor atento uma visão diferente da forma como o mundo de hoje se
manifesta.
Guarda, Abril de 2014
Daniel António Neto Rocha
(recensão crítica publicada In: Revista Praça Velha n.º 34. – Guarda: NAC/ CMG, Maio de 2014. – p. 224 a 225.)
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